Meus professores da Fefelech

Francisco Weffort, Paula Montero, Chico de Oliveira, Beth Lobo, Ruy Fausto e Regis Andrade.

Esses são os professores da Fefelech que fizeram parte de minha formação. A Beth Lobo nos deu para ler L’Établi, um relato da experiência do autor como operário numa fábrica da Citroën, uma coisa totalmente diferente do que víamos na FEA, e que me encantou. Ela insistia para eu mudar para a sociais, e de algum modo, mudei. Beth Lobo faleceu muito cedo, e confesso que escrevendo agora sinto falta dela. Queria poder falar com ela, já madura, professora, doutora, das fábricas por onde passei.

Ruy Fausto faleceu recentemente, e busquei seus cursos como quem busca no shopping a melhor loja e nela a melhor roupa. Queria um marxismo puro e correto, a lente perfeita para ver o mundo, e nisso não me decepcionei: estava ali um marxismo rigoroso, que analisava até os travessões do texto, as movimentações dos capítulos, a dança dos conceitos. De vez em quando me voltam à cabeça os modos de produção e as formas de cooperação, e vai saber se não são as aulas herméticas do professor buscando seus sentidos no mundo real.

Do Regis, também falecido cedo, lembro que nos deu coisas que não imaginávamos obter: nos deu a liberdade para a pesquisa e o foco também. Tinha perguntas claras e queria que nós fôssemos lá fuçar e descobríssemos. Está entre meus melhores professores de todos os tempos, não só da graduação, mas da vida. Ousou demais, e isso lhe permitia deixar que ousássemos. Dirigia como um doido, mas nas nossas reuniões de pesquisa ouvia atento, sem pressa, com perguntas pausadas, como se nos assistisse. Sentíamo-nos gente, e quando dou uma boa aula penso nele.

A Paula Montero, desses todos, é a que está viva. Fiz um curso com ela dado pelos 3 departamentos da sociais, sobre o pensamento social brasileiro. O curso foi excelente, e das aulas dela me lembro dos seus olhos, grandes e saltados, que já exigiam de nós uma acomodação. Acho que entendi naquele curso a própria idéia de pensamento, de um conjunto de autores e textos que pode ser interrogado, analisado de modo ponderado. Dos cursos da tradição uspiana de exegese textual, esse é o que ficou, pois descortinava os elos entre a exegese e a vida mundana.

Acho que o curso que fiz com o Chico de Oliveira era sobre estrutura de classe e estratificação social. E penso que o curso do Weffort era sobre a América Latina, mas esse não encontro no meu currículo, talvez tenha feito como ouvinte. Os cursos estão embaralhados em minha memória. Lembro que Chico de Oliveira tinha mais certezas, Weffort mais dúvidas. Um deles subiu até a porta, numa sala em auditório, para pedir a um aluno que estava olhando pelo visor para entrar na aula, ou sair da porta, pois aquela posição ali de vigia lhe lembrava os tempos da ditadura.

Ambos eram uma ponte entre aquele “tempo da ditadura” e os novos tempos, tempos da democracia, que eles procuravam entender, como o Regis, ainda atarantados com esse novo regime, votos, partidos, eleições. Todos, na verdade, eram essa ponte, alguns ignorando uma transição que tinha acabado de acontecer, buscando as forças profundas da sociedade, outros reconhecendo que algo havia mudado e era preciso compreender, como o Regis e o Weffort.

Esses professores, é preciso dizer, acolhiam a nós, “economistas”, numa universidade onde alunos de outros cursos não eram necessariamente bem recebidos, nem na FEA nem na FFLCH. Éramos das primeiras turmas de uma tal resolução 3045, do reitor Goldemberg, que permitia que fizéssemos matérias em outras unidades. Mas nem todos os professores e funcionários gostavam da idéia, criando toda a sorte de obstáculos. Então só o fato de terem nos aceitado nas aulas e ainda nos tomado como interlocutores já diz muito sobre cada um.

Do Weffort, lembro ainda, com carinho, que me indicou para fazer minha primeira pesquisa com o Regis, ou seja, meu primeiro emprego. Ele também leu minha monografia, uma leitura de Dependência e Desenvolvimento, de Fernando Henrique Cardoso, a partir da leitura de Karl Marx do Ruy Fausto, ou seja um exercício de crítica e interpretação. Ele aceitou conversar comigo numa tarde ensolarada, no Cedec. Sobre a monografia, me fez uma pergunta que ainda ouço, quando escrevo coisas assim meio abstratas: “Tá. E daí?”

Não soube responder, mas não importa. Boas perguntas são assim, ficam penduradas na cabeça da gente, a espera do encontro com alguma possível resposta. Cada um desses professores, de um jeito, faz parte do que eu escrevo hoje, seja me levando para viagens mágicas, seja me trazendo para o mundo social.

Voltando ao Blog

Depois de ter deixado o “Crônicas” parado, com as histórias distribuídas em redes sociais e blogs agregadores, vou voltar ao meu blog nesse fim de ano chuvoso, aos poucos tentando voltar ao texto mais corrido, menos entrecortado, vamos ver como sai. Escrever à mão não sei mais, mas será que ainda sei escrever à blog?
Na coluna de hoje de Gurovitz no Estadão há menção de uma explicação mais institucional à crise democrática global. Eu particularmente endosso. No Brasil, esse fator, o engessamento dos partidos, é o que salta aos olhos desde o início, sobre o qual escrevi desde 2013, se não me engano. Os autores citados sustentam (Hopkin e Blyth) que também é esse divórcio entre Estado e cidadão que jogou os países no populismo de direita ou de esquerda. Aqui talvez essa explicação seja tão óbvia, que não consigamos enxergar que em país mais resolvidos institucionalmente, onde juízes não ganham ordens de grandeza mais que trabalhadores, isso também ocorra. E, quando falamos em partido, sempre relembro a iniciativa do Onda Azul, do Humberto Laudares, que tinha como alvo exclusivo a democratização do PSDB. Era algo focado, preciso, pertinente, que não deu em nada. No Brasil, não faltam boas idéias, mas sim ouvidos a elas. Valeria a pena reler o manifesto do Onda Azul, se alguém tiver aí. Não tinha tecnologia, não tinha guerra cultural, não tinha penduricalho, não tinha gimmick. Eram jovens dizendo: “ei, quero participar, em bases democráticas e transparentes, pode ser?” Houve várias reuniões com os caciques, não sei dos detalhes. Depois o impeachment atropelou tudo. Vale uma pesquisa, esse momento pós-eleição e pré-impeachment.

Unrelated: comprei duas garrafas de Chandon Brut com cartão de alimentação. O mesmo que não posso usar na feira. Sou a favor da extinção desses cartões, que são uma burocracia a mais, desviando dinheiro de impostos para os bolsos destas empresas de cartão, e criando distorções inadmissíveis na economia de alimentação e de “coisas que vende em supermercado”. Não é tão unrelated, pois são esses cartéis artificialmente produzidos que nos impedem de usar nossos recursos (voto ou dinheiro) na obtenção do produto que mais nos convém (representação ou frutas de excepcional qualidade).

Finalmente, sobre o fascismo atual: muito difícil combater na esfera púbica um governo que de antemão abre mão de ideais liberais e democráticos, ou melhor, que de antemão os nega. O PT, com seus defeitos todos, dizia querer acabar com a pobreza. E isso era verificável: a pobreza aumentou, diminuiu, manteve-se? Assim com todas metas, da violência à mulher à educação. Por isso, inclusive, faziam aquelas ginásticas, como dizer que a Lei Maria da Penha não mudou nada, mas se não tivesse tido seria pior, que é uma agressão à lógica, exigindo manipulação estatística considerável. Mas havia a idéia, compartilhada por todos os social-democratas, de que a violência contra a mulher é algo ruim.

Ora, o fascismo não tem esse ideal. “Me ne frego.” O meio ambiente que se dana. Uso apartamento funcional para comer gente. E assim por diante. Não é que as propostas sejam vagas, para evitar muita cobrança, ou seja, pragmaticamente vagas. É que são contrárias aos ideais de uma sociedade melhor! Sim, estamos contra o professor, a cultura, a ciência, é isso mesmo. Você não chega para um ditador fascista e diz: “Oi, mas o seu antecessor tratava a imprensa com mais liberdade.” Não, that’s the point, eu sou diferente, eu sou contra a liberdade de imprensa, que deve ser um braço do Estado. “Oi, as minorias no seu governo estão sendo discriminadas.” Ah, é? Então vou tirar a cidadania delas, tá bom assim?

O debate público será infernal, pois dos 60% de eleitores do presidente eleito, uma parte considerável, não sabemos quanto exatamente, mas são bem eloquentes nas redes, aceitou os pressupostos fascistas, ou seja, se coloca contra os ideias de uma sociedade melhor. A mera denúncia, de que, sei lá, a violência aumentou, a escolaridade piorou, ou algo do gênero, não terá impacto algum, ou até terá impacto negativo nesse eleitorado, pois nunca houve a promessa de índices sociais melhores.  Não sei exatamente com quem contamos nesse debate, pois é algo novo para todos nós. Só não é novo para quem viveu os anos 1920 e 1930 na Itália e na Alemanha, mas os acontecimentos dos anos 1940 foram tão destrutivos que, no fundo, sabemos pouco da vivência das décadas anteriores. Cito Os Diários de Victor Klemperer para quem se interessa, mas deve haver outros estudos que não conheço.

Então é isso, esse primeiro texto corrido. Boas festas!

Doação de campanha

A quem possa interessar:

Fiz uma única doação à campanha de Geraldo Alckmin, no valor de 45 reais, no dia 14 de agosto de 2018, ao contrário do que consta no site do TSE, onde aparecem 6 doações de 45 reais, na mesma data, no total de 270 reais.

O fato foi informado ao TRE e ao PSDB nacional e estadual.

Heloisa

Meu voto em Fernando Haddad

Só vamos construir uma social-democracia atualizada se mantivermos a ordem democrática.

Vou votar em Fernando Haddad amanhã e queria dizer a vocês por quê. É pela figura dele, um professor universitário em busca de um Brasil melhor, um administrador com realizações a mostrar, um homem digno e pai de família, um líder sereno que sabe dialogar. Tudo isso o diferencia do adversário de modo espetacular.

Mas é também pelo cenário internacional, que pode fazer do Brasil um laboratório do autoritarismo. Peço que pensem no que os Estados Unidos passam agora, e vejam quanto nossa democracia conseguirá resistir até começarem os atentados políticos e o silenciamento da oposição. Pensem se nossa administração pública e nossos juízes farão frente a essa guerra digital que nem mesmo os especialistas compreendem. Pensem se nossos líderes tão melindrosos serão capazes de se unir numa firme frente democrática debaixo de ameaças.

Pensem, enfim, se vale a pena, olhando para o retrovisor da bagagem do PT, tapar os olhos para o que está à nossa frente. Ou se seria a hora, olhando para o futuro, de apostar num bom candidato e construir, de modo livre, uma social democracia atualizada que nem o PT nem o PSDB puderam nos dar.

Eu sou Heloisa Pait, professora de sociologia da comunicação.

Bons candidatos nas eleições de 2018

Leitores,

Nessas eleições, o importante é escolher candidatos racionais, com propostas factíveis de governo e ancoradas em nossos valores fundamentais de justiça e democracia. Ao longo da campanha, vou listar aqui nomes que julgo atenderem a esses princípios básicos, na esperança de ajudar quem busca candidatos moderados e corretos. Aceito sugestões de nomes, e recomendo a todos que façam exercício semelhante, ajudando a divulgar bons nomes para os cargos legislativos e executivos que serão escolhidos em outubro!

São dois senadores esse ano!

Mara Gabrilli, Senado: https://jovempan.uol.com.br/eleicoes-2018/psdb-confirma-candidaturas-de-mara-gabrilli-e-tripoli-ao-senado.html

Mendes Thame, Deputado (era pro Senado, mas agora é pra câmara) http://www.jornaldepiracicaba.com.br/cidade/2018/02/pv_indica_thame_para_concorrer_ao_senado

Gilberto Natalini: https://twitter.com/gnatalini/status/1004117888054243328

Ruben Cesar Fernandes (Rio): https://www.facebook.com/rubemcesar2018/?hc_ref=ARSMV2ZfB6quXHT1PEeZFucG1Nl7zE5XdbU7w9d9YrltCmev7ORZZCgsAEtTCLxAgEM&fref=nf

Humberto Laudares: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/author/Humberto-Laudares

A lista continua…

Bom voto!

Heloisa

Um ritual paulistano

Então ontem no meio do serviço, sinagoga cheia, judeus paulistanos silenciosamente, na última hora antes do Shofar, recomendando ao seu Deus que os inscrevam no Livro da Vida, soletrando sobrenomes complexos de modo claro e até um pouco impaciente, como se estivessem diante de um escrivão de cartório semi-analfabeto, e então ontem eis que o cantor anuncia as autoridades presentes e a lista de nomes parecia não terminar. Ao final perguntei à mulher do lado se estavam todos ali. “Sim, estão.” Doria também? “Sim, todos.”

E a reza continuou.

Lá bem longe, ao lado da Torá, uma fileira inteira de tucanos nos admirava. Pensavam, solenes: “Quantos votos! E todos nossos.” É um povo fiel, não há dúvida. Nos Estados Unidos, votam nos democratas. Entusiasmados alguns, de nariz tapado outros, mas votam nos democratas. Aqui, votam no MDB e em suas mutações. Queria eu saber se votavam no PSD de Juscelino, no passado, que seria o pai do atual PSDB. Houve um tempo, e foi quando eu comecei a entrar no mundo público, em que a Hebraica trazia todas as correntes políticas para dialogar publicamente; foram os anos 1980. Em todas as instituições paulistas era assim, havia esse pluralismo, e no meu clube portanto não foi distinto.

No debate de que participei naquela época, havia candidatos a deputado pelo PT, a Clara Ant; pelo MDB, o Walter Feldman; e pelos outros partidos de então, de que não me recordo mais. Sugeri à Magali resgatar essa memória dos debates. Hoje há pelo que compreendi conversas com as tais lideranças comunitárias ou talvez palestras com os jovens. E também a minoria socialista aguerrida aos seus dogmas. Mas naquela época a tônica era a do debate. O debate resolveria nossos problemas e, de fato, os resolveu. Dos anos 1970, ficou a tradição da visita de Yom Kipur, sempre às vésperas das eleições mas nesse caso, por coincidência, logo após.

As visitas que talvez começaram como mero pedido de votos, na época em que mães e filhas iam na sinagoga com roupas em cor cítrica copiadas de Dancin’ Days, ganharam outra dimensão; a de um acordo com esse povo cioso de seus acordos, de um símbolo de amizade e respeito mútuo. Houve um caso de vaias do público, mas acho que foi no Rio de Janeiro e o candidato abusou; no geral toleramos a presença deles e até gostamos. Discursos estão fora do cardápio, digamos, para usar a metáfora do dia. Vale apenas a menção aos nomes e a presença honrosa ao lado da Torah.

Ontem não se tratava apenas de agradecer os votos aos vereadores e ao prefeito eleito. Ontem era também uma demonstração de poder do grupo político que hoje domina o PSDB paulistano; os membros dos outros grupos, também respeitados pela comunidade, não foram. Estava lá o governador do Estado de São Paulo, dizendo em alto e bom silêncio, como em nossas preces: “Eu fiz o prefeito, o deputado federal aqui do meu lado, e mais um vereador da comunidade. Estou à disposição de vocês e vocês, espero, de mim.” Não era exatamente um acordo que repudiamos.

Sobre as escaramuças internas ao partido, não era mais hora de falar: as tais prévias onde o nome de Doria foi imposto, pelo que diz Goldman e outros tucanos. O fato é que o paulistano, em eleição livre e democrática, escolheu sem hesitar João Doria para prefeito de nossa cidade, ganhando em praticamente todas as zonas eleitorais (http://especiais.g1.globo.com/sao-paulo/eleicoes/2016/apuracao-zona-eleitoral-prefeito/sao-paulo/1-turno). E era esse prefeito eleito que agora participava pela primeira vez desse ritual paulistano peculiar, a visita de Yom Kipur.

Nós também silenciosamente lhe dávamos as boas vindas. Por que não? Que tínhamos de mau a dizer dele, nessas primeiros dias do ano, cujo início coincidiu com as eleições municipais? Nada. Ou muito pouco, especialmente comparando-se com os de sua classe, a tal classe política. Seria o caso de estudar o assunto, mas não me recordo em São Paulo de mau tratamento do poder estadual quanto à nossa comunidade. Mesmo durante a ditadura, quando o poder policial perseguia e matava tantos de nós, não era do Palácio dos Bandeirantes que vinham as ordens; ao contrário.

Havia coronéis tresloucados e políticos atiçadores, sim. Mas não me recordo de mais, e seria interessante pesquisar. Não tivemos, ao que eu saiba, ideólogos anti-semitas em nosso estado, como teve Pernambuco, exaltadores de uma nacionalidade que se faz à custa do outro. Ao contrário. Os da semana de 22 abraçam o estrangeiro, o outro, o inovador, a troca. E Sergio Buarque de Holanda, com sua descrição fina e irônica de nossos dramas, seu modo simmeliano de retratar o mundo e as pessoas, tem, se não na ancestralidade, ao menos na escrita, a compaixão reflexiva que marca a nossa tradição.

Por que isso, eu não sei. Talvez a elite paulistana reconheça suas raízes bandeirantes e portanto cristãs-novas. Talvez por puro pragmatismo, que a fez trazer para cá gentes de todos os cantos, até do Japão. Assunto para pesquisa. Para o dia de hoje, fica de lado a pesquisa e também ficam de lado todos os poréns que possamos ter a Alckmin e Doria, seus métodos e princípios. São, de um modo ou outro, prefeito e governador de nossa cidade e estado. Talvez não sejam os nossos métodos e princípios, mas vindo ontem à sinagoga declaram que não são opostos a eles, e aceitamos sua declaração como verdadeira.

É um ritual, e como tal cada qual interpretará de um modo. Eu vejo como a reafirmação de um laço muito particular, talvez ancestral, entre meu povo e essa terra.

Uma xícara de café

Na praia do Lázaro, provavelmente no Bar do Peres, me enchi de coragem e pedi um café depois do almoço. Meus pais deixaram. E diante da xícara de café preto eu sorri orgulhosa e me senti gente. Mas a euforia durou pouco. Aquele passaporte para o mundo adulto me botou a cabeça para funcionar e perguntei ao meu pai:

– E seu pai?

A mãe de meu pai nós visitávamos sempre. Eram visitas sem graça, em que passávamos boa parte do tempo sonolentos pedindo para voltar para casa. Entrávamos no carro e começávamos a brincar. Meu pai reclamava:

– Vocês ficaram reclamando que estavam com sono e agora essa bagunça.

Mas e seu pai?

– Meu pai morreu cedo.

Para as crianças, qualquer ano faz diferença. Cedo quanto?

– Quantos anos você tinha?

– Seis.

Fiquei em silêncio. Pensei em minha própria idade pequena e escondi aquele sentimento proibido que é ter pena dos pais. Olhei a xícara de café e com as palavras de criança devo ter associado tudo, pois me lembro agora de tudo junto: o mundo adulto onde eu entrava e as coisas que doíam de saber.

Não parecia ter deixado sequelas, aquela perda. Estava lá meu pai forte, nos levando para passear, ao lado de minha mãe. De que modo ele tinha se criado sem aquilo que até o momento eu julgava imprescindível?

Pensei, já adulta, que me pai inventou um pai com sua imaginação e com seus estudos, uma espécie de super homem que era um misto de seu avô Jacob Schnaider com Filippo Brunelleschi, metade rabínico e metade renascentista. Entretanto, fisicamente, meu pai era muito parecido mesmo com seu pai, com aquele seu rosto atraente de gângster de filme americano.

Agora, olhando para trás, vejo que não pode ter sido exatamente assim. Um pai não se descobre nos livros. Aprendemos a ser quem somos com aqueles à nossa volta e, para o bem e para o mal, não conseguimos facilmente nos libertar de seus modos de ser, de agir, de pensar. Seguimos todos, ainda que não no CRM, as profissões de nossos avós.

Devidamente enterrado no Cemitério da Vila Mariana, acudiram os filhos de meu avô os tios e tias dos pequenos, devolvendo algo que lhes havia sido roubado. Mas deram tanto e com tamanha generosidade, que acabaram superando em muito o que meu avô mesmo podia lhes oferecer como pai.

Meu pai adolescente acompanhava com os olhos as baratas que os alcoólatras viam subir pela parede, na sala de espera do consultório psiquiátrico do Tio Henrique. Talvez lá tenha desenvolvido seu desgosto com a bebida ou, mais profundamente, uma compreensão do que pode fazer um diploma para ajudar as pessoas, lição também dada pela Tia Raquel. Eu os conheci só de nome. Mas os homenageio aqui do fundo do coração.

Enfim. Os dois irmãos criados pelos tios amorosos cresceram corretos e, no caso de meu pai, genial. Talvez seja por isso, eu conto para a menininha que tomava café pela primeira vez em Ubatuba, que não havia nenhum trauma aparente, nenhuma sequela naquela ausência que pode até ter virado uma bênção.

Os batentes que nos chegam

Então recebi a notícia, dada assim casualmente, de um testamento deserdando a mim e a meu irmão de bens que haviam chegado à tia Guita quando do falecimento de seu irmão, o tio Gilberto, de cuja herança na época abrimos mão por sugestão de uma parente.

Meu irmão decidiu, racionalmente, ignorar notícia inverossímil, que a mim jogava uma névoa preta sobre os longos anos que se interpuseram entre a morte de meu pai e do tio Gilberto, o Giba, e da irmã mais velha dos dois, a Guita, a quem tratamos com zelo de filho.

Os irmãos mais novos a Guita deplorava que fumassem no quarto; enxergava uma fuligem densa impregnar a parede. Nós crianças víamos apenas o sinal viril dos pais daquela época e das mães modernas que lhe tomavam emprestada a independência. Agora sim é que tudo ficava enevoado.

Não é que um dia a Guita, que nem talão de cheques possuía, tenha levantado um dia, tomado um táxi e ido a um cartório registrar um testamento. Um papel decerto lhe surgiu à frente entre inventários e certidões de compra e venda e eu não era mais herdeira do resto de um apartamento na Melo Alves.

Ou talvez, como supõe meu irmão, nem haja tal papel. Para hoje não importa; há a notícia de sua existência e é ela que me dirige a pergunta:

– Que é uma herança?

Por que passei adiante o que me dava por lei o tio Gilberto, sendo que aceitei na infância água de bolinha em garrafas esverdeadas, gibis variados, programas infantis na TV a cores no domingo e a coleção completa das aventuras de Sherlock Holmes?

E por que cuido de cada batente do apartamento da Martinico como se meu avô ainda me pegasse no colo feliz, me levantasse vermelha e rechunchuda até que eu visse meu reflexo no espelho de minha avó? O que tomamos de nossos pais sem merecer, o que rejeitamos sem justificativa, o que abraçamos com orgulho e o que deixamos que se esfacele em nossas mãos?

Era isso que o testamento me perguntava.

E, com maior alarido, que é que deixamos aos nossos?

***

– Se eu ganhar na loteria não vou deixar pra vocês pois dinheiro muito faz mal.

– Tia Lô, nós só queremos que você nos leve a lugares maravilhosos!

– Isso já faço – respondi até um pouco cortante. – Não levei vocês para Paris?

A herança será a sucessão de viagens a lugares maravilhosos, o Marais, a atulhada loja de armarinhos da Fradique cujos estoques nos engoliam como num conto de fadas, os caminhos de poças de água por onde brincávamos as três como crianças, o banco defronte a um lago branco onde era permitido à alma falar.

Minha herança valiosa.

Meus pais – esses deram o que tinham para nós. Mesmo as desavenças nos aproximavam:

– Rosa, ela briga assim comigo porque é de Touro como eu.

Nascemos, eu e meu pai, no mesmo dia do ano, um 10 de maio sempre ensolarado.

– Sei – disse minha mãe matemática, achando graça da superficialidade da idéia que, no fundo, era correta.

Meu pai, me dei conta do fato, pelo contraste do agora, não me deserdou.

Continuo almoçando no seu chinês favorito. Um dia, caminhando na Rua dos Pinheiros, procurando onde comer, meu irmão avisou:

– Essa cantina tem um problema d’a gente ir.

– Qual é?

– O pai não gostava.

E ficamos na frente do restaurante, ponderando se entrávamos ou não. Assim é que somos. Esse tipo de herdeiro. Se meu pai sabia que cuidaríamos deste modo de sua memória, eu não sei. Um dia me disse:

– Não sabia que você gostava tanto de mim.

Como é que não sabia, se eu o adorava, se essencialmente tudo o que escrevo são adendos a uma longa carta de dia dos pais que comecei a redigir na infância?

Não sabia por vaidade, essa de nem sentir o gosto do amor quando temperado pela crítica. Meu e de minha mãe também. Mas falou que não sabia, e então não sabia.

Foi ler num texto meu e aí ficou sabendo, e espero que desse momento em diante não tenha se arrependido de me dar o que deu.

***

Os móveis fora do lugar, gavetas abertas e esvaziadas. Mais que um apartamento dilapidado, um lugar sem vida ou passado. Minha missão a de encontrar enfeitando a mesa de centro os crochês feitos pelas pacientes psiquiátricas da tia Raquel, tia do meu pai. “Drª Raquel, a senhora nos trata como gente”, elas teriam dito à minha tia-avó, segundo a tia Guita. Crochês intactos ao longo das décadas, do Juqueri aos Jardins, evaporados em questão de semanas.

Vasculhávamos a esmo, sem propósito. Meu irmão catava talheres iguais aos de casa, apenas faltando as marcas do uso de duas gerações. Provavelmente comprados juntos pelos dois irmãos. Achou uma máquina dessas de homem, uma ferramenta elétrica, e pegou exultante, um pouco menino. Eu achei as carteiras de trabalho da tia Polinha, nossa outra tia-avó, farmacêutica. A posteriori, notei que catávamos as coisas de trabalho de nossos tios, signos de vidas em movimento, talvez por não haver mais nada para pegar, talvez por exercerem sobre nós alguma atração.

Meu irmão olhou para o grande relógio de chão de nosso bisavô, deslocado para a janela, e disse com hesitação incomum:

– Nem sei se quero…

Catei um abridor de garrafas feito de perfil de alumínio seccionado da Arquetipo, desenho de meu pai, uma cadeira de trabalho também de meu pai, que emprestei a contragosto, além de três pequenas esculturas suas que foram parar lá. São coisas que cabem a mim e chegaram a mim.

No ponto de ônibus, já escuro, pensávamos no dia que ainda não havia acabado. Eu iria a uma manifestação, com o pretexto de uma pesquisa. Meu irmão encontraria colegas. Aguardávamos cansados, amigos, vazios e contentes a um só tempo. No meu celular, a mensagem de um homem público agradecia pela compreensão gentil de suas razões, que ele havia visto num texto meu.

Também eu tratava as pessoas como gente. Por razões que só sei de segunda mão, me deram meus pais um nome muito belo e medieval que não me descreve, e não o da tia Raquel, que seria natural e deve ter sido cogitado. Nem o nome, nem o crochê, me chegaram a mim. Não importa. O que deve chegar, chega, as heranças devidas e cuidadas.