Os batentes que nos chegam

Então recebi a notícia, dada assim casualmente, de um testamento deserdando a mim e a meu irmão de bens que haviam chegado à tia Guita quando do falecimento de seu irmão, o tio Gilberto, de cuja herança na época abrimos mão por sugestão de uma parente.

Meu irmão decidiu, racionalmente, ignorar notícia inverossímil, que a mim jogava uma névoa preta sobre os longos anos que se interpuseram entre a morte de meu pai e do tio Gilberto, o Giba, e da irmã mais velha dos dois, a Guita, a quem tratamos com zelo de filho.

Os irmãos mais novos a Guita deplorava que fumassem no quarto; enxergava uma fuligem densa impregnar a parede. Nós crianças víamos apenas o sinal viril dos pais daquela época e das mães modernas que lhe tomavam emprestada a independência. Agora sim é que tudo ficava enevoado.

Não é que um dia a Guita, que nem talão de cheques possuía, tenha levantado um dia, tomado um táxi e ido a um cartório registrar um testamento. Um papel decerto lhe surgiu à frente entre inventários e certidões de compra e venda e eu não era mais herdeira do resto de um apartamento na Melo Alves.

Ou talvez, como supõe meu irmão, nem haja tal papel. Para hoje não importa; há a notícia de sua existência e é ela que me dirige a pergunta:

– Que é uma herança?

Por que passei adiante o que me dava por lei o tio Gilberto, sendo que aceitei na infância água de bolinha em garrafas esverdeadas, gibis variados, programas infantis na TV a cores no domingo e a coleção completa das aventuras de Sherlock Holmes?

E por que cuido de cada batente do apartamento da Martinico como se meu avô ainda me pegasse no colo feliz, me levantasse vermelha e rechunchuda até que eu visse meu reflexo no espelho de minha avó? O que tomamos de nossos pais sem merecer, o que rejeitamos sem justificativa, o que abraçamos com orgulho e o que deixamos que se esfacele em nossas mãos?

Era isso que o testamento me perguntava.

E, com maior alarido, que é que deixamos aos nossos?

***

– Se eu ganhar na loteria não vou deixar pra vocês pois dinheiro muito faz mal.

– Tia Lô, nós só queremos que você nos leve a lugares maravilhosos!

– Isso já faço – respondi até um pouco cortante. – Não levei vocês para Paris?

A herança será a sucessão de viagens a lugares maravilhosos, o Marais, a atulhada loja de armarinhos da Fradique cujos estoques nos engoliam como num conto de fadas, os caminhos de poças de água por onde brincávamos as três como crianças, o banco defronte a um lago branco onde era permitido à alma falar.

Minha herança valiosa.

Meus pais – esses deram o que tinham para nós. Mesmo as desavenças nos aproximavam:

– Rosa, ela briga assim comigo porque é de Touro como eu.

Nascemos, eu e meu pai, no mesmo dia do ano, um 10 de maio sempre ensolarado.

– Sei – disse minha mãe matemática, achando graça da superficialidade da idéia que, no fundo, era correta.

Meu pai, me dei conta do fato, pelo contraste do agora, não me deserdou.

Continuo almoçando no seu chinês favorito. Um dia, caminhando na Rua dos Pinheiros, procurando onde comer, meu irmão avisou:

– Essa cantina tem um problema d’a gente ir.

– Qual é?

– O pai não gostava.

E ficamos na frente do restaurante, ponderando se entrávamos ou não. Assim é que somos. Esse tipo de herdeiro. Se meu pai sabia que cuidaríamos deste modo de sua memória, eu não sei. Um dia me disse:

– Não sabia que você gostava tanto de mim.

Como é que não sabia, se eu o adorava, se essencialmente tudo o que escrevo são adendos a uma longa carta de dia dos pais que comecei a redigir na infância?

Não sabia por vaidade, essa de nem sentir o gosto do amor quando temperado pela crítica. Meu e de minha mãe também. Mas falou que não sabia, e então não sabia.

Foi ler num texto meu e aí ficou sabendo, e espero que desse momento em diante não tenha se arrependido de me dar o que deu.

***

Os móveis fora do lugar, gavetas abertas e esvaziadas. Mais que um apartamento dilapidado, um lugar sem vida ou passado. Minha missão a de encontrar enfeitando a mesa de centro os crochês feitos pelas pacientes psiquiátricas da tia Raquel, tia do meu pai. “Drª Raquel, a senhora nos trata como gente”, elas teriam dito à minha tia-avó, segundo a tia Guita. Crochês intactos ao longo das décadas, do Juqueri aos Jardins, evaporados em questão de semanas.

Vasculhávamos a esmo, sem propósito. Meu irmão catava talheres iguais aos de casa, apenas faltando as marcas do uso de duas gerações. Provavelmente comprados juntos pelos dois irmãos. Achou uma máquina dessas de homem, uma ferramenta elétrica, e pegou exultante, um pouco menino. Eu achei as carteiras de trabalho da tia Polinha, nossa outra tia-avó, farmacêutica. A posteriori, notei que catávamos as coisas de trabalho de nossos tios, signos de vidas em movimento, talvez por não haver mais nada para pegar, talvez por exercerem sobre nós alguma atração.

Meu irmão olhou para o grande relógio de chão de nosso bisavô, deslocado para a janela, e disse com hesitação incomum:

– Nem sei se quero…

Catei um abridor de garrafas feito de perfil de alumínio seccionado da Arquetipo, desenho de meu pai, uma cadeira de trabalho também de meu pai, que emprestei a contragosto, além de três pequenas esculturas suas que foram parar lá. São coisas que cabem a mim e chegaram a mim.

No ponto de ônibus, já escuro, pensávamos no dia que ainda não havia acabado. Eu iria a uma manifestação, com o pretexto de uma pesquisa. Meu irmão encontraria colegas. Aguardávamos cansados, amigos, vazios e contentes a um só tempo. No meu celular, a mensagem de um homem público agradecia pela compreensão gentil de suas razões, que ele havia visto num texto meu.

Também eu tratava as pessoas como gente. Por razões que só sei de segunda mão, me deram meus pais um nome muito belo e medieval que não me descreve, e não o da tia Raquel, que seria natural e deve ter sido cogitado. Nem o nome, nem o crochê, me chegaram a mim. Não importa. O que deve chegar, chega, as heranças devidas e cuidadas.

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