Um ritual paulistano

Então ontem no meio do serviço, sinagoga cheia, judeus paulistanos silenciosamente, na última hora antes do Shofar, recomendando ao seu Deus que os inscrevam no Livro da Vida, soletrando sobrenomes complexos de modo claro e até um pouco impaciente, como se estivessem diante de um escrivão de cartório semi-analfabeto, e então ontem eis que o cantor anuncia as autoridades presentes e a lista de nomes parecia não terminar. Ao final perguntei à mulher do lado se estavam todos ali. “Sim, estão.” Doria também? “Sim, todos.”

E a reza continuou.

Lá bem longe, ao lado da Torá, uma fileira inteira de tucanos nos admirava. Pensavam, solenes: “Quantos votos! E todos nossos.” É um povo fiel, não há dúvida. Nos Estados Unidos, votam nos democratas. Entusiasmados alguns, de nariz tapado outros, mas votam nos democratas. Aqui, votam no MDB e em suas mutações. Queria eu saber se votavam no PSD de Juscelino, no passado, que seria o pai do atual PSDB. Houve um tempo, e foi quando eu comecei a entrar no mundo público, em que a Hebraica trazia todas as correntes políticas para dialogar publicamente; foram os anos 1980. Em todas as instituições paulistas era assim, havia esse pluralismo, e no meu clube portanto não foi distinto.

No debate de que participei naquela época, havia candidatos a deputado pelo PT, a Clara Ant; pelo MDB, o Walter Feldman; e pelos outros partidos de então, de que não me recordo mais. Sugeri à Magali resgatar essa memória dos debates. Hoje há pelo que compreendi conversas com as tais lideranças comunitárias ou talvez palestras com os jovens. E também a minoria socialista aguerrida aos seus dogmas. Mas naquela época a tônica era a do debate. O debate resolveria nossos problemas e, de fato, os resolveu. Dos anos 1970, ficou a tradição da visita de Yom Kipur, sempre às vésperas das eleições mas nesse caso, por coincidência, logo após.

As visitas que talvez começaram como mero pedido de votos, na época em que mães e filhas iam na sinagoga com roupas em cor cítrica copiadas de Dancin’ Days, ganharam outra dimensão; a de um acordo com esse povo cioso de seus acordos, de um símbolo de amizade e respeito mútuo. Houve um caso de vaias do público, mas acho que foi no Rio de Janeiro e o candidato abusou; no geral toleramos a presença deles e até gostamos. Discursos estão fora do cardápio, digamos, para usar a metáfora do dia. Vale apenas a menção aos nomes e a presença honrosa ao lado da Torah.

Ontem não se tratava apenas de agradecer os votos aos vereadores e ao prefeito eleito. Ontem era também uma demonstração de poder do grupo político que hoje domina o PSDB paulistano; os membros dos outros grupos, também respeitados pela comunidade, não foram. Estava lá o governador do Estado de São Paulo, dizendo em alto e bom silêncio, como em nossas preces: “Eu fiz o prefeito, o deputado federal aqui do meu lado, e mais um vereador da comunidade. Estou à disposição de vocês e vocês, espero, de mim.” Não era exatamente um acordo que repudiamos.

Sobre as escaramuças internas ao partido, não era mais hora de falar: as tais prévias onde o nome de Doria foi imposto, pelo que diz Goldman e outros tucanos. O fato é que o paulistano, em eleição livre e democrática, escolheu sem hesitar João Doria para prefeito de nossa cidade, ganhando em praticamente todas as zonas eleitorais (http://especiais.g1.globo.com/sao-paulo/eleicoes/2016/apuracao-zona-eleitoral-prefeito/sao-paulo/1-turno). E era esse prefeito eleito que agora participava pela primeira vez desse ritual paulistano peculiar, a visita de Yom Kipur.

Nós também silenciosamente lhe dávamos as boas vindas. Por que não? Que tínhamos de mau a dizer dele, nessas primeiros dias do ano, cujo início coincidiu com as eleições municipais? Nada. Ou muito pouco, especialmente comparando-se com os de sua classe, a tal classe política. Seria o caso de estudar o assunto, mas não me recordo em São Paulo de mau tratamento do poder estadual quanto à nossa comunidade. Mesmo durante a ditadura, quando o poder policial perseguia e matava tantos de nós, não era do Palácio dos Bandeirantes que vinham as ordens; ao contrário.

Havia coronéis tresloucados e políticos atiçadores, sim. Mas não me recordo de mais, e seria interessante pesquisar. Não tivemos, ao que eu saiba, ideólogos anti-semitas em nosso estado, como teve Pernambuco, exaltadores de uma nacionalidade que se faz à custa do outro. Ao contrário. Os da semana de 22 abraçam o estrangeiro, o outro, o inovador, a troca. E Sergio Buarque de Holanda, com sua descrição fina e irônica de nossos dramas, seu modo simmeliano de retratar o mundo e as pessoas, tem, se não na ancestralidade, ao menos na escrita, a compaixão reflexiva que marca a nossa tradição.

Por que isso, eu não sei. Talvez a elite paulistana reconheça suas raízes bandeirantes e portanto cristãs-novas. Talvez por puro pragmatismo, que a fez trazer para cá gentes de todos os cantos, até do Japão. Assunto para pesquisa. Para o dia de hoje, fica de lado a pesquisa e também ficam de lado todos os poréns que possamos ter a Alckmin e Doria, seus métodos e princípios. São, de um modo ou outro, prefeito e governador de nossa cidade e estado. Talvez não sejam os nossos métodos e princípios, mas vindo ontem à sinagoga declaram que não são opostos a eles, e aceitamos sua declaração como verdadeira.

É um ritual, e como tal cada qual interpretará de um modo. Eu vejo como a reafirmação de um laço muito particular, talvez ancestral, entre meu povo e essa terra.

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2 respostas em “Um ritual paulistano

  1. Um dos estrangeiros da semana de 22 é Blaise Cendrars?

    Em 22 vai ser 100 anos da semana e 200 da independência. Vamos precisar de um paulista na presidência para não avacalhar as comemorações 😉

    • Sim, esse mesmo! Ele curtiu o pessoal da semana, e era um globe trotter. Ele se não me engano não julgava São paulo. Achava divertido que a arquitetura daqui fosse uma zona total, não exigiu do Brasil ser algo que não era.

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