Uma jararaca

Ainda na série sobre os homens de minha família, conto, ou reconto, essa sobre meu pai.

A separação de meus pais, se teve causas internas, também teve externas, e minhas dulcíssimas avós estão entre as principais. O falso heroísmo da Malu Mulher e aquele hino feminista insuportável cantado pela Simone vêm em segundo lugar.

Não era coisa pouca o olhar de desprezo de minha avó paterna em direção à minha mãe, de enfado com aquela alegria toda, registrado não só na minha memória mas desde o início no álbum de casamento. Sobre a relação das duas, reconto uma história da prima Esther.

Parece que um dia minha avó pediu uma forma de bolo de volta e minha mãe, muito educada, começou a listar todos os seus compromissos do dia: levar crianças, aulas, trazer crianças, aulas, supermercado, aulas, após o que, se desse tempo, ela devolveria a forma de bolo. Minha avó: “É, filha é filha; nora é nora.” De acordo com a prima Esther, minha mãe retrucou, matemática: “Verdade. E mãe é mãe; sogra é sogra.”

Era daí pra baixo. Minha mãe não era professora de uma das mais prestigiosas instituições de ensino superior paulistana; ela “batia pernas” na rua. Seus filhos não eram crianças inteligentes e comportadas; nós nos vestíamos em trapos e comíamos com as mãos. Era assim.

Conto mais uma, se não for abusar do leitor. Parece que numa reunião de família as mulheres comentavam casamentos recentes de outras mulheres, julgando-os – casou bem, casou mal – pelo valor da conta bancária do noivo. Minha mãe se encheu e soltou: “Pra mim, homem é para o prazer; dinheiro eu ganho na rua”, efetivamente chamando de putas as senhoras presentes.

Com relação à minha avó materna e meu pai, não era tão distinto. No momento mais negro do casamento, meu pai chegou em casa, lá em Ubatuba, com um recorte de uma matéria do Notícias Populares relatando o assassinato de um sogra por um genro que simplesmente não agüentou mais a coisa. “Genro mata jararaca”, era a manchete, se não me engano. Éramos muito jovens e ficamos até meio assustados. Mas acredito que o jornal tinha essa função mesmo, de desanuviar as relações familiares cotidianas a partir do relato catártico de um crime ou outro, e que além de meu pai muitos outros genros aumentaram sua tiragem naquele dia, contentes, solidários silenciosos com o criminoso e especialmente uns com os outros.

Minha mãe contava que quando ela era noiva meu pai e minha avó se adoravam, conversavam às pampas. Vai saber. Mas depois a coisa avinagrou. Era minha mãe que mandava parar quando minha avó desatava a falar mal de meu pai.

E bem depois minha mãe mãe faleceu.

Meu pai, viúvo formalmente, tinha direito a meia aposentadoria da minha mãe. A cada mês, ele visitava minha avó e entregava esse dinheiro. Não acho que fosse uma quantia que fizesse falta a meu pai, mas seria um dinheirinho a mais. Para minha avó, acredito que ajudasse a fechar as contas.

Não era um grande gesto; era um pequeno gesto. Mas não um gesto sem significado. A constância da visita, o afluxo da renda, a idéia de que entre a jararaca e aquele desvairado havia solidariedade e que, numa hora de real precisão, ele estaria lá.

Nenhum dos dois falava muito disso para mim. Não sei se meu pai entrava e tomava chá, ou se apenas entregava o dinheiro no hall de entrada. Não sei se falavam da política ou das coisas do dia-a-dia. Não sei se falavam de minha mãe ou se choravam sua falta. Apenas sei que era assim. A Rosa havia sido, para cada um dos dois, a pessoa mais importante da vida. E então era assim que deveria ser.

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