Vidal tem um pequeno terreno em Retiro Grande, no caminho de Cachoeira do Arari. Eu podia dizer onde isso é no mapa, mas digo apenas que estou aqui perto e ontem, quando vi o Jornal Nacional, vi com curiosidade todas as notícias lá do Brasil.
Conheci-o na balsa de Icoaraci para a Ilha do Marajó e conversamos, como os passageiros conversam nas balsas. Contando a vida. Ou ao menos é assim comigo. A história dele é bonita de ouvir, há uma correção e uma bondade firme, é um homem moreno, baixo, quase atarracado pela vida dura, mas que se expressa muito bem, ao contrário de muitos que conheci por aqui, que me exigem um certo esforço para lhes acompanhar o raciocínio.
Vida dura, pelo que entendi, pelo trabalho. Mas sem humilhação nem arrependimentos. Ele nasceu em Marajó, no interior. O pai tinha um barco, iam às vezes para Icoaraci. Tudo demorava dias, atracavam à noite nas ilhas do caminho. Às vezes o pai ia para Cachoeira do Arari, também demorava um dia todo, indo à pé.
Mas ele estudou. Até o colegial. Só vestibular que não fez. Trabalhava desde pequeno, trabalho duro, carregar peso, capinar. “Não como esses vadios de hoje, me desculpe a expressão.” E concordei. Trabalho infantil é realmente muito ruim, mas uma enxada na infância teria, ao menos a mim, me feito um certo bem.
Umas cicatrizes de cana nos braços teriam talvez me feito menos hipocondríaca.
O que fez tudo mais difícil foi ele ter perdido a mãe muito cedo, aos 8 anos. Foi difícil. Me coloquei no lugar do pai dele, e imaginei o quão difícil. Mas a avó e uma tia, em Icoaraci, ajudaram.
Foi nessa pequena vila que ele fez trabalhos para as casas, jardinagem, ainda estudando, jovem. E assim surgiu um trabalho numa peixaria/restaurante, onde conheceu funcionários da Petrobrás e de uma empresa americana. Pediu para caprichar no almoço e eles acabaram combinando com a dona do restaurante comer lá todo dia, pagar a cada quinze dias.
Ele foi no escritório receber o pagamento e achou a base da Petrobrás bonita. Pediu para trabalhar lá, e deu certo! O gringo chegou a oferecer trabalho nos Estados Unidos, ele disse que não pois a essa altura já havia casado.
É sua única dúvida na vida, pelo que entendi. Talvez devesse ter feito a vida nos Estados Unidos. (Eu lhe disse que fez o certo: que nos Estados Unidos teria muito mais coisas, uma casa melhor, mais objetos. Mas que a vida seria mais vazia. Que ele fez bem em ficar.)
Pois os três filhos não lhe dão dúvidas. São seu orgulho. Uma casada, os outros dois formados: marketing e pedagogia. Nunca deram trabalho; ele pedia para voltar às 10, voltavam. “Na minha casa sempre teve lei.”
Eu: Não é só lei; é também o seu amor. O senhor deve ter sido muito generoso com eles. Ele não me desdisse.
Vidal veio do nada. Ou assim a mim me parece, eu lá sei que tesouros os pais, a tia e a avó lhe deram. A mim apenas parece que veio do nada e subiu na vida, pois continuou na Petrobrás e agora trabalha para uma empresa privada, em prospecção de petróleo na Amazônia. Quando precisam buscar equipamento no exterior mandam ele; já esteve duas vezes em Singapura, e pelo que entendi aprendeu inglês lendo manuais técnicos e não lendo Faulkner, mas me diga você quem é que capturou melhor a mente do americano.
“Faça bem o seu trabalho, faça direito. As pessoas notam.” É o conselho que dá aos filhos. É um bom conselho.
Vidal me chamou a atenção não porque estamos na era do bolsa-seita e do bolsa-forno de microondas. Também por isso, mas não apenas por isso. Me chamou a atenção pois não tenho uma idéia muito clara do que é vir do nada – do nada num certo sentido, material, intelectual, já nem sei -, pois como disse a família do Vidal deve ter sido muito rica em coisas bem mais valiosas.
Nem meus pais nem meus avós vieram do nada. Meu avô veio ao Brasil sem um tostão no bolso, mas tinha estudo, falava línguas e tinha contatos e construiu a vida em torno disso. Com os outros não deve ter sido distinto; sem dinheiro, sem propriedades, mas com idéias na cabeça e meios para colocá-las em prática conseguiram se firmar.
Então não vejo que tenham vindo “do nada”. Mas pensando sobre o Vidal talvez eu esteja errada. Talvez venhamos todos um pouco do nada, e não completamente do nada. Talvez uma herdeira de uma grande fortuna tenha que, num certo dia, se inventar. E um rapaz de classe média tenha que um certo dia sair da periferia e encarar um vestibular. E um filhote de professores também tenha que fechar o livro e pensar por si. E, finalmente, os Vidais desse Brasil talvez tenham mais calos que nós, mas calos quem não têm?