Caos dialógico

Claro que as realizações judaicas no plano da artes, das ciências e do comércio me enchem de orgulho, mas amar mesmo, eu amo o povo judeu por causa de algo que chamo aqui de “caos dialógico” que se instala quando um judeu está conversando com pelo menos outro judeu, mesmo que esse judeu seja ele mesmo.

Hoje, na Hebraica, não era um encontro banal. O jornalista Bernardo Kucinski e a crítica literária Berta Waldman formam uma dupla de peso, mesmo que um pouco neutralizada pela moderadora, a Hebe Camargo que, inspirada pela proximidada das Páscoas, resolveu, de passagem pelo Iguatemi, nos brindar com sua presença.

Kucinski tentava, nos intervalos que a Hebe deixava, falar do seu livro K. O livro, Berta nos contou, relata a busca do pai de Kucinski pela filha, professora da USP desaparecida durante a ditadura. Não li, mas acho que vale a pena ler o livro. A voz é do pai, escrita pelo filho, que aparece na trama. Mas desde o começo, nos disse Berta, o leitor está desamparado, pois sabe que a busca é inútil. Ela é realmente boa analista, a Berta. Pena que não ama meus contos, mas fazer o quê?

Talvez pela má condução do debate, talvez pelo ambiente da Hebraica, não sei, a conversa voltou-se para o ídish que o pai estudava, defendia, vivia. “A Berta falou há pouco também, o ídish é um cadáver.”

“Bernardo, eu não falei isso.” E toda a platéia concordou com a Berta, indignada.

Quando consegui, falei:

“Bernardo, o que a Berta falou foi que a literatura pode ser uma lápide, e não que o ídish é um cadáver. Mas queria te ouvir mais falar do livro, do Brasil de então e de hoje.”

Só depois de falar a frase é que me dei conta de seu absurdo. Como é que uma língua pode ser um cadáver? E como é que um livro pode ser uma lápide? E como é que nos juntamos lá todos no sábado para discutir se uma língua é um cadáver ou se um livro é uma lápide, alegres por compartilhar uma dor que é apenas do pai do Bernardo, apenas dele, de ninguém mais, ídish ou não.

Depois a conversa andou um pouco mais, Bernardo nos contou coisas que não estão no livro, da importância do ídish para o pai, que o vivia intensamente, politicamente. Espero que tenham gravado o depoimento. Da dor do pai – isso acho que está no livro – por perceber que na família do marido a filha havia confiado, sabiam da militância (essa parte será ficção?)

Falou da importância de escrever o livro, jogar na cara da esquerda que era judeu sim e que se danem. A platéia adorou, isso mesmo, que engulam. Eu adorei. Falou dos rabinos, dos padres. Isso não está no livro: na Igreja o pai encontrou um acolhimento que os rabinos não lhe deram. Faz sentido. E talvez – impressionante ele ser capaz de ver o pai com tanta nitidez – até um certo fascínio de seu pai escritor por aqueles personagem, ambiente, aos quais tinha acesso pela primeira vez. Me identifiquei, essa curiosidade que às vezes se confunde com amizade.

Os lugares-comuns da Hebe me deixavam irritada, saí antes de falar alguma tolice. E depois foi pensando que seja lá como foram as coisas, a Berta tem razão, uma lápide. Um livro, uma lápide, para uma filha desaparecida. Nós nos falamos assim, jogando frases a esmo, em direções aleatórias, é isso o que quis dizer com caos dialógico. Eu via isso em casa, desde criança, não entendia como aquelas frases desconexas resultavam em entendimento. Mas resultam, é assim que falamos. Com Hebe ou sem.

 

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