Nos anos 90 os motoristas de táxi em Nova York eram todos do sul da Ásia, mas depois que voltei ao Brasil, indo a Nova York de visita, já eram do Egito: reservados, finos, talvez pertencentes a uma classe social mais alta em seu país de origem. Nova York é assim mesmo, nada especial, a cada época uma leva imigrante, um grupo, uma história.
Num congresso de sociologia em Midtown, fui almoçar numa estande de cachorro-quente na rua, o vendedor era egípcio. Conversamos um pouco, aquele jeito de latino, antes de conhecer já sai cantando, como por hábito, por obrigação. Perguntei o que era aquela parada ali na 5a Avenida. Ele me explicou que eram os porto-riquenhos. E engatou, entusiamado: “Mas grande mesmo é a parada gay. Você não imagina o que é. Um monte de gente. E fantasiados…” O moço egípcio descrevia, fascinado, aquela gente toda andando assim em Nova York, como um alemão que vai pela primeira vez ver o Carnaval do Rio. “E era muito divertido, você não imagina!”
Voltei ao congresso tentando imaginar o que seria, vir de um país autoritário e muçulmano, e ver a parada gay de Nova York. Uma explosão de alegria, nem tanto dos gays americanos, mas no rosto do moço egípcio, de ver os outros sendo quem quisessem ser ali na rua, para todos verem. Me lembrei de uma amiga que foi ao Egito, quando fomos, juntas, pela primeira vez, para Israel, em 1987. Eu fiquei num kibutz, ela foi ao Cairo. Os homens a olhavam, queriam falar com ela, ela me contou, como se isso fosse uma algo novo, falar com uma mulher.
Egípcio era um amigo que tive em Pittsburgh, amigo precioso. Eu saía da minha sala e passava na dele, “vamos almoçar!” E íamos. Ele tinha uma expressão tão transparente que só de olhar eu sabia se ele tinha gostado da comida, o que ele estava pensando, era incrível. Nunca conheci ninguém tão assim. Um dia passei lá e ele pediu desculpas, não iria almoçar, era Ramadan. Me dei conta de que meu grande amigo de Pittsburgh era muçulmano, por alguma razão não tinha pensando nessa possibilidade, pois no Brasil a maior parte dos árabes é cristã. Passamos mau bocados naquele ano, mas muito juntos. Desabafávamos. Ríamos. Apoiávamo-nos. Ele está agora na Arábia Saudita, montando uma nova universidade. Legal.
Egípcios judeus conheço muitos. O marido de uma grande amiga de minha mãe, um sujeito muito culto, muito inteligente. Com um olhar ao mesmo tempo reservado e intenso, não sei explicar. Sempre sorrindo. Depois minha analista, uma das pessoas mais brilhantes que conheço. Daquelas que quando você está indo, ela está voltando. Vê – é a profissão dela, eu sei, mas a analista da minha tia do Rio um dia mordeu a mão da minha tia – vê coisas que você não enxerga. E ainda uma grande amiga minha, que saiu ainda criança do Cairo. Um dia o marido da amiga da minha mãe a viu e perguntou: “Ei, você não é do Egito? Eu lembro de você do Cairo.” Fiquei besta. Meio século se passou, e as crianças do Cairo ainda na sua memória. E além disso os pais da Debbie e todo aquele povo da Hebraica que fala francês com um sotaque que minha mãe desprezava, do Egito.
Tem ainda os egípcios da Bíblia, que não sei que relação tem exatamente com os egípcios de hoje, pois depois da saída dos judeus o Egito, como Israel, esteve nas mãos de impérios, de culturas, com novos povos e novas línguas e novas religiões. Sempre gostei, como todos, da celebração da Páscoa, da saída do Egito. Mas ando lendo a Bíblia, e minha história favorita hoje é a de José, história bem diaspórica. Só pra lembrar: José é um pouco biruta, os irmãos o vendem como escravo, ele vai parar no Egito, vai preso, sua birutice o leva à corte, onde cria um plano econômico que salva o Egito da fome e garante a estabilidade da oferta de alimentos no longo prazo. Nada mal.
Dessas minhas leituras também aprendi que vem do Egito uma das mais impressionantes tecnologias de comunicação, o alfabeto. Os egípcios tinham uma escrita já muito desenvolvida, mas algum povo canaanita usou os hieroglifos, que de modo geral representavam coisas, para representar os sons das iniciais das palavras na língua canaanita que representavam aquelas coisas. Então o signo que representava casa em egípcio passou a representar o som “b”, pois beit é casa nas línguas canaanitas, e assim por diante. Uma simplificação tremenda, que entre os hebreus significou a expansão da alfabetização para além de uma pequena classe de eruditos, ainda na era bíblica. E esse é ainda, como algumas variações, o alfabeto que usamos hoje.
Nas imagens de TV, impossível ver toda essa diversidade, essas pessoas. Vi na internet que as mulheres egípcias vão dizer não à fraternidade muçulmana e exigir participação no novo governo, mas não as vi nas ruas. Vi apenas os homens, todos um pouco parecidos, usando as mesmas roupas. Há entre os comentaristas os que estão certos de que os egípcios querem democracia, repetindo a mesmo mantra: desenvolvimento leva a acesso à informação, que leva a liberdade, que leva a democracia. E há os que estão certos de que a irmandade muçulmana vai tomar as rédeas de um movimento legítimo e desorganizado e adeus paz sem bem vinda democracia. Mas quem são os egípcios de hoje, quais suas organizações, não sei quem sabe de verdade. O Brasil é transparente, está nos jornais, mesmo nos anos 70 estava nos jornais, era só ler. E o Egito?
Muitos na TV falam do final de uma ditadura de 30 anos, de uma paz imposta com Israel que a sociedade nunca engoliu. Como se antes de Mubarak houvesse no Egito uma espécie de Juscelino exilado, um Arbenz deposto. Mas antes de Sadat, com Nasser, havia uma guerra atrás da outra no plano externo, e uma ditadura nacionalista no país. Antes disso, na época da partilha, líderes egípcios foram os primeiros mentores da expulsão dos judeus árabes, que de fato aconteceu nos anos seguintes, afetando quase 1 milhão de pessoas.
“Como era o Egito?”, eu perguntei para uma amiga de uma amiga de minha mãe, que conheci recentemente. Os olhos dela foram para longe, e ela me descreveu Alexandria com amor. Armênios, judeus, várias comunidades, uma cidade linda, escolas francesas, uma cultura sofisticada e um desenvolvimento econômico intensamente ligado à Europa. “O editor dos livros escolares, um judeu, teve sua gráfica tomada e saiu do país”, seu marido completou, reforçando o paradoxo, “livros em árabe.”
Desses egípcios, muitos saíram em choque, sem nada. Minha mãe explicava de modo bem simples: Os ricos vieram para o Brasil, os pobres foram para Israel. Os ricos, bem entendido, saíam sem nada, mas tinham cultura, tinham experiência em negócios, e recomeçaram tudo alguns degraus abaixo na escala social, morando inicialmente em hotéis baratos no centro, financiados por organizações de ajuda mútua. Os pobres, pelas impressões que tive em Israel, levaram consigo um enorme rancor dessa expulsão inesperada, repentina, depois de gerações em seus países. “Sou israelense, nasci aqui e falo hebraico em casa”, muitos me diziam sem detalhar muito suas origens, em geral um hábito entre os judeus.
Ao invés de se tornarem, em seus países, uma ponte de cultura e negócios entre o seu país e o novo Estado, como seria natural, esses judeus árabes viraram o fiel da balança a favor de soluções mais duras no confronto com os países agressores e com os palestinos. E, no Brasil, um impulso a mais no desenvolvimento do comércio e da cultura local, diga-se de passagem. Os armênios não sofreram, pelo que entendi, perseguição direta, mas por causa da estatização da economia saíram do Egito como sairiam de Cuba: por falta de trabalho. De qualquer forma, todo um tecido social foi desfeito, toda uma economia debilitada, em nome de um nacionalismo cretino que predata a “ditadura de 30 anos”.
Em Israel perguntei se os israelenses vão ao Egito, um dos poucos países com quem tem acordos de paz na região. “Não somos bem vindos, não vamos”, me disse uma israelense. Na internet outro dia li um chamado de um israelense: “Parem de se enfiar na Índia, na costa do Brasil, vão conhecer o Egito, é super legal. Por trás da ditadura há um povo livre que gosta de se divertir.” Um israelense me contou uma história tocante: um amigo seu foi a trabalho para o Cairo, e visitou o prédio onde morou, ainda criança. Perguntou ao porteiro se ele sabia de um amigo seu, de infância. O porteiro lembrou perfeitamente de sua família, e avisou o antigo amigo, que o recebeu em casa.
Já meu amigo de Pittsburgh, dos israelenses só tinha a agradecer que o cessar-fogo foi assinado antes de ele entrar em combate, em 1973. Nunca tinha estado lá, pois o governo egípcio faz tudo para impedir que seus cidadãos visitem Israel, e vejam os árabes e judeus israelenses metendo o pau no governo e outras coisas mais que numa democracia se pode fazer livremente.
Então me pergunto: quando os egípcios derrubarem o atual governo, quais serão suas referências? O orgulho nacionalista de Nasser? A Alexandria cosmopolita? A que passado se referem, para construir o futuro? Penso no vendedor de cachorro-quente na 5a Avenida, desejando se juntar à Gay Parade, fantasiado, maquiado, rindo e abraçando quem estiver ao lado, não por um desejo sexual, mas apenas pelo desejo de desejar.