“Max e os Felinos” é um dos melhores livros que li. Não é conto, romance, é uma espécie de fábula, acho. Fisicamente, é um livrinho. Plagiaram, mas duvido que o plágio seja tão bom. Devem ter pego uma cena e dado uma dimensão toda grandiosa, romanesca, enquanto o livro é uma fábula. Uma fábula sobre o medo, sobre as lutas que temos que travar sem termos nos inscrito em nenhum exército. Não quero reler o livro, pois a imagem que tenho dele é tão boa, e, como meu pai dizia, nunca volte a um lugar onde foi feliz. Mas o que me lembro é de uma luta com felinos de verdade, de mentira, todos muito reais, felinos europeus e americanos, conversáveis e de poucas transações. Uma luta constante, que ao final acaba com Max dizendo que finalmente estava em paz com seus felinos. Que é um conceito que pra compreender você precisa já ter sido devorado algumas vezes na vida, estar em paz com seus felinos.
Enfim, um dos melhores livros. Desses que a gente dá quando está apaixonada, aí a paixão se vai e a gente olha em volta e diz, droga, cadê meu livro? Então eu era tão íntima do Moacyr Scliar que uma amiga me mandou um email dizendo que ele havia sofrido um derrame, delicada como quem dá uma notícia ruim sobre um familiar. E depois outra amiga finalmente me deu os pêsames, quando ele faleceu.
A primeira vez que o vi foi na Hebraica, entreguei uns contos, ele não foi muito simpático e pronto. Muito tempo atrás.
Aí escrevi bastante.
Aí escrevi um conto que se chamava “O Barranco do Rabino” e resolvi mandar pra ele, pensei, puxa, esse conto é a cara do Moacyr Scliar. E ele adorou e me escreveu de volta logo em seguida. E a cada novo conto ou volume, eu escrevia para ele, e ele me dizia coisas bem legais, que todo escritor quer ouvir. Ele gostava até das revisões. Mas e os felinos? Os felinos a gente continua lutando, lutando. Porque os felinos não são coisas da literatura, são da vida.
E aí essa doença e morte, assim, sem avisar. Me deu raiva. Morreu e não me ajudou a publicar meus livros, pensei. Nem agradeci as amigas, puxa, obrigada por me avisar, que coisa mais chata. Nada. Raiva. Vontade de escrever um email mais ríspido, mas ele não ia nem ler. Não me ajudou, morreu e agora é que não me ajuda mais. Tá, escreveu a introdução das minhas histórias de Nova York, me emociono só de lembrar, mas aí mandei pras editoras e não adiantou nada. Sentimento um pouco íntimo, não? Que a gente tem por pai ausente.
E aí, voltando de Marília ontem, nessa viagem tão cansativa e improdutiva, que é onde eu realmente descanso e trabalho, me dei conta da raiva que era de mim mesma. Da raiva que eu tenho de mim por não ter publicado. De não ter ido atrás. Às vezes acordo de manhã e lembro daquela editora que me propôs publicar e recusei. Como teria sido? Claro que fui atrás de outras, com o mesmo livro, com outros. Mas não insisti, não acampei na frente da casa de ninguém, me encastelei, queria que viessem a mim. Mostro meus contos pra todos, como uma cadela, e depois tremo de medo que leiam de fato, como um gato na chuva.
Yoram Kaniuk inventou uma história mirabolante para ir falar direto com um editor de Nova York. A história era legal pois era feita de retalhos de verdade. Documentos em hebraico, selos diplomáticos, cara de pau. Por que eu não inventei nada? Dá raiva. Um dia o Kaniuk foi falar com o William Saroyan, cena maravilhosa do livro, Saroyan insuportável, Kaniuk sendo testemunha alegre do que um homem poder ser, e eu lembrei do Marcos Faerman me enviando sugestões de leitura, Saroyan entre eles, lembro da letra dele no bilhete, um outro escritor judeu gaúcho que também – deve ser algum problema dessa geração – morreu assim sem dar satisfações.
Do Marcos eu gostava. Sabe quando você gosta da pessoa? Acho que todo mundo gostava dele, ele era bem gostável. O Moacyr gostava dele. Também às vezes acordo de manhã e me arrependo de não ter aceito o emprego na Shalom, em 1980 e tanto. Eu seria jornalista hoje? Seria escritora? Estaria mais feliz? Menos? Igual? Escreveria melhor? Dá raiva.
Eu tinha uma idéia de que queria deixar essa coisa da escrita fora da profissão, não queria viver disso, queria ter a liberdade total. E meio tarde descobri que liberdade total não existe, e além disso que é impossível manter a separação e que além disso é legal ganhar dinheiro escrevendo. Não texto que vai em embalagem de desodorante, pois aí já é demais, tem gente que faz qualquer coisa pra viver de texto, mas tem coisas legais que dá pra fazer.
Um dia liguei para o Marcos pra pedir alguma coisa, alguma sugestão de leitura, algum conto que eu queria que ele lesse, não sei. Usava um telefone no quarto da minha mãe, quando queria falar algo mais privado, mas depois – minha mãe era minha melhor amiga – contava tudo. E ele disse que o melhor que havia na Shalom eram minhas cartas, e falou falou um tempão, e eu não entendia como isso podia ser, e eu nem pedi nada. E agora entendi, é quando um aluno entra na sua sala e te pergunta sobre alguma coisa importante, tipo: “então os meios de comunicação podem mesmo contruir uma sociedade democrática?”, e de repente você lembra por que está lá, por que aguenta tudo aquilo, lembra da essência da coisa, que pro professor é pensar a sociedade, pro editor era a literatura, os textos, eu lembrava isso para o Marcos, pois eu não tinha a menor idéia do que fosse uma revista, orçamento, custos, dono argentino, prazos, anunciantes, tudo menos texto. Só queria escrever. William Saroyan. Gente.
E num outro telefonema, para outro homem, me dei conta do contrário, de quão desimportante eu era, então ainda olho para aquele canto do quarto com algum receio, como se fosse um oráculo, mas isso é outra história.
E agora nem sei mais, nem sei se sei escrever. Continuo gostando do que escrevo, mas aí fui ler na Hebraica um trecho e a platéia me olhava indiferente. Leio minhas sobrinhas e penso: isso sim é que é texto! Coisa profissional, pensada, sem pedir licença. Texto sem medo, felinos domesticados. Eu lutando. Um círculo de jovens poetas em Nova York me aplaudiu. “Buffalo! Moose!”, invocaram emocionados os espíritos que animam o grupo.
Então é isso, a perda do Moacyr Scliar me fez pensar essas coisas. Espero que essa reflexão passe por homenagem, pois entre os judeus honrar os mortos é imperativo.