Eu, professor de mim

Hoje fui ao Bandeirantes, para o lançamento do novo livro de nossa professora de redação, que publicou meu conto “Ela é má” no Composição 5.

Eu já havia retornado ao Colégio uns meses atrás, para uma insólita palestra do José Serra. Hoje, como da última vez, o peito apertado de quem volta a um lugar difícil.

Já contei decerto, mas ao final do terceiro ano, o popular Ernesto perguntou à classe quem, depois da saber como aqueles anos seriam, não teria feito o Bandeirantes. Já aliviada pelo término próximo, levantei a mão distraída, como se fosse a resposta óbvia. Mas olhando em volta vi que todas as colegas me olhavam acusadoras e recolhi o braço rapidamente. Hoje não recolho: olhando para trás, foi a pior experiência intelectual que tive. Levanto a mão serena, tranquila, mas firme.

Não acuso meus pais pois não caberia. Se foi uma decisão impensada, não foi inconsequente. Uns anos depois de sair perguntei: “Por que vocês me botaram no Bandeirantes? Por que não me colocaram no Santa Cruz, por exemplo?”

Meu pai respondeu com uma dupla negativa: “Eu, colocar você em colégio de padre? Nem pensar.” Nem ele colocaria alguém, nem ninguém me colocaria. Nem, talvez, alguém devesse colocar alguém. Aceitei a resposta que fez todo o sentido para mim então e agora talvez mais.

Mas foi um horror. Essa mente inquieta, esse humor áspero, esse olhar observador preso naquelas paredes de tijolinhos, junto a professores também presos em suas matérias assépticas. Meu Deus.

Saí do evento abalada, com pena daquela adolescente começando sua vida nos livros. Disse que lhe compreendia afinal, que entendia o quanto doía.

Ainda no evento, um homem me viu e parecendo me reconhecer me perguntou se eu havia dado aulas lá. Eu disse que tinha estudado de 1982 a 1985, e ele se apresentou, professor de geometria ou trigonometria. Falou o nome várias vezes, mostrou fotos, tive uma lembrança muito vaga, muito vaga mesmo.

Listou os tópicos todos que ensinava, nada veio à mente. Na verdade, só me veio à mente as aulas do Tio Reinaldo de desenho geométrico onde fazíamos gregas e pintávamos de duas cores. Eu gostava de azul e mostarda, por exemplo. Sei o que são ângulos mas não me recordo de ter aprendido. Lembro também das aulas no Etapa de preparação para a Olimpíada de Matemática, os toros e uma vertigem que tive por imaginar formas tão belas.

Mas não do Bandeirantes.

– Eu me lembro de você! – ele disse. Seu jeito de falar, eu me lembro de você na 347! – ele insistia, um pouco indignado ou talvez apenas decepcionado com meu esquecimento.

– Sabe, o Bandeirantes foi difícil para mim, acho que bloqueei muita coisa – expliquei.

Mas não me surpreendi com sua lembrança. Eu era de se lembrar, numa sala de aula.

– Eu mudei muito – ele se desculpou.

– Não, você não mudou, apenas se passaram 30 anos – expliquei.

Perguntei do professor de atomística, querendo talvez dizer que algo havia ficado.

– O Flavius?

– Isso, o Flavius!

Eu lembrava do Flavius pois ele me deixava faltar às aulas, que eram logo cedo, e os treinos de madrugada me atrasavam justo nas aulas dele. Lembro como se fosse hoje, 246, indo falar com ele, explicando a situação, dizendo que até gostava das aulas, mas batiam com o treino. E ele deixou.

Eu lembrava pois tinha acontecido uma conversa, um diálogo, um interesse. Em uma palavra, uma história.

E eu era de histórias. Não era? Eu era de histórias. Os átomos girando em torno de um núcleo, com suas danças estranhas, chegando até nós, as melhores alunas do curso de biológicas do Bandeirantes, era uma história. Ou eu via uma história.

No mais, matéria matéria matéria matéria. No anos seguinte era tanta matéria que nas quartas-feiras à tarde, eu e minha mãe livres, eu simplesmente chorava de de tanta matéria e dizia que não aguentava mais. Era muita matéria.

Eu não tinha o tipo de cérebro que conseguia filtrar tudo aquilo. Ainda não consigo, tudo é importante, tudo é urgente, tudo é necessário e tudo é conectado. Então aquela enxurrada de matéria, que talvez para os outros fosse apenas algo para se reter em separado, como nas receitas culinárias, “reserve”, até o dia do vestibular, para mim reclamava uma atenção, um raciocínio, um pensar. Uma entrega.

E então estou aqui. E andando pela Paulista, depois de ter conversado com aquela adolescente inquieta, ter lhe compreendido pois se os professores se recordam dela, por que eu não vou recordar?, pensei, claro, nos meus alunos.

E compreendi assim de sopetão que talvez eu seja, para alguns deles, o que fui hoje para mim mesma.

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