Caro Editor,
Em referência a artigo “Relator se defende e petistas falam em ‘golpe’” publicado no dia 7 de maio de 2016 no Estadão, há um trecho que identifica a UDN como “partido representante do regime militar no Congresso”. Caso essa identificação seja de senadores, isso deve estar indicado no texto. Assim como está redigido, parece ser informação do redator do jornal, informação repleta de equívocos.
A UDN foi extinta pelo AI-2, em 1965. Ou seja, a UDN não foi base de sustentação do regime militar pois simplesmente não existiu durante 19 dos 21 anos de regime militar. Além disso, teve líderes francamente oposicionistas, como Carlos Lacerda, que em 1966 lança a Frente Ampla contra o regime. Ele foi cassado em 1968 e há até suspeitas de que teria sido assassinado pelo regime, junto com Jango e Juscelino. O último presidente eleito com apoio udenista foi Jânio Quadros, cassado em 1964.
O regime militar, além disso, não tinha representantes no congresso nacional. Ao contrário. O sistema eleitoral vigente foi constantemente alterado justamente pela dificuldade que o regime tinha de emplacar sua ideologia nas urnas. Se Vargas tinha seus partidos-poodle, não é possível dizer que os militares tenham sido bem sucedidos em criar partidos subservientes. Daí as proibições, cassações e pacotes que atravessam todo o período e que são contornadas pela oposição, num jogo de gato-e-rato.
A Arena, criada em 1965, foi um aglomerado de conservadores e oportunistas, como os variados “centrões” da Nova República, que dançaram por 19 anos conforme a música. Eles não representaram os militares no poder, como hoje não representa o governo o PP, por exemplo. Simplesmente acharam que seus objetivos políticos e eleitorais seriam mais facilmente alcançados fazendo mesuras aos donos do poder, como continuaram fazendo em 1985 e hoje.
O José Sarney que se candidata a vice-presidente da república em 1984 é exemplo disso: anti-getulista, confortavelmente apoiou o regime militar. Sentindo os ventos soprarem em outras direção, candidatou-se a vice-presidente junto ao PMDB, partido oposicionista durante a ditadura. Em nenhum momento representou o regime; serviu-se dele enquanto foi possível, assim como se serve até hoje da miséria de seu estado.
Emblemático dessa independência de nossos políticos quanto a ideologias e ditadores é o nosso querido Dr. Paulo Salim Maluf, político conservador que se lança candidato a presidente da república pela Arena contra o interesse dos militares. Sempre altivo, ainda que não impoluto, vota a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff – seu PP, herdeiro do PDS e da Arena, era parte da base de sustentação do governo. Até não ser mais.
E por que um aposto me trouxe tamanho incômodo? Pois reforça, com seus inúmeros equívocos, uma revisão histórica que se tentou fazer no Brasil, que o regime militar era um bloco monolítico no executivo e que não houve resistências e adesões expontâneas de dentro do sistema político. E que, logo, a única ação verdadeira era a luta armada. Mentiras. Houve endosso pragmático ao governo, como continua havendo, por pior que esse seja; houve resistência democrática legislativa e na sociedade civil; e também, claro, houve lutas dentro da base de sustentação do regime na busca de poder político.
Decerto que houve também gente que, de dentro do legislativo, endossasse a ideologia da repressão e do Brasil grande. Vêm-me à memória os discursos de José Maria Marin, hoje devidamente detido em prisão domiciliar, contra o jornalismo da TV Cultura na assembléia legislativa, que podem ter endossado a prisão e morte do então diretor Vladimir Herzog por órgãos da repressão. Trata-se de um delinquente. A sustenção do regime foi, entretanto, garantida por pulhas comuns que representaram eles mesmos.
A quem é dirigida a carta?
Ao editor do Estadão mas também a todos que insistem no revisionismo de que o sistema político nacional estava “a serviço da ditadura” e “representava os militares”.