O patrulhamento ideológico é um fato da vida brasileira. Nossa herança inquisitorial se faz presente em vários momentos da vida nacional e convive com as instituições democráticas que garantem a livre expressão. Seria de se espantar, na verdade, se a universidade estivesse imune a essa tão arraigada herança colonial, com sua suspeita do diferente, sua condenação moral da heresia e sua exigência de fé inconteste. Entretanto, devemos sempre lembrar que a universidade brasileira também é filha dos desejos de liberdade, da busca do conhecimento e de uma vida melhor para todos. Aqui vão algumas recomendações para lidar com a patrulha.
Em primeiro lugar, não faça patrulha! Isso é fundamental. Se seu colega gosta de pintar o cabelo de verde e você acha ridículo, guarde sua opinião para si: o cabelo é dele e sua cor não lhe afeta. Se ele perguntar, diga polidamente o que pensa. Se ele diz acreditar em Objetos Voadores Não-Identificados, o problema também é dele. Você pode argumentar que esses fenômenos podem ser explicados cientificamente, mas em última instância ele tem o direito de acreditar no que quiser e continuar sendo respeitado como ser humano pelos que o cercam. A patrulha ideológica é uma verdadeira praga no ambiente cultural e científico, abafando o debate e excluindo vozes relevantes. Não compactue.
Entre nos debates com confiança nos seus interlocutores, apostando no entendimento comum e no enriquecimento dos argumentos que o diálogo franco e profundo traz. Exponha suas idéias, questione a dos outros, busque novos argumentos, organize debates, enfim, use os anos universitários para se aprimorar na escuta dos argumentos dos outros e na elaborações dos seus. Esse é um treino para a vida. Exponha-se nas redes sociais, com seus amigos e colegas, e esteja aberto também para ouvir e aprender com os outros. Na sala de aula, ouça com a máxima atenção o que seus professores e colegas dizem e apresente suas idéias de modo respeitoso.
Isso não quer dizer tolerar tudo e achar tudo lindo. Se algum colega age ilegalmente, afaste-se dele imediatamente. Isso não é patrulha, é bom senso. Você não é polícia e não tem a obrigação de fazer denúncia, mas começar sua vida ao lado de criminosos é péssima idéia. Uma coisa é a liberdade de pensamento. Outra coisa é infringir as leis. Ocorre que entre as duas há um universo de práticas que podem ser anti-éticas mas são comuns, tais como colar na prova. Não seja conivente com tais posturas mas lembre que é atribuição do professor identificar plágios. Em suma, afaste-se de gente que tem condutas fora da lei ou anti-éticas e seja tolerante com idéias e estilos de vida distintos dos seus.
Caso você esteja sentindo hostilidade no debate ou discriminação por suas idéias, procure descrever objetivamente o que está acontecendo. Um debate acalorado pode ser normal, e um professor que expõe suas idéias em aula pode não querer impô-las a você. Avalie se está diante de patrulhamento mesmo ou apenas participando de um debate honesto porém acalorado. Veja se há indícios concretos de patrulhamento, i.e., imposição de idéias mediante coação física, exclusão do grupo social ou coação institucional, tais como atribuição de notas e obtenção de bolsas a partir de critérios espúrios. Parece algo simples, mas o mero fato de sentar e escrever o que está acontecendo vai organizar sua experiência e ajudar você a refletir sobre ela de modo racional.
Caso se trate apenas de debates acirrados, prepare-se melhor e enfrente, buscando mais argumentos e mais informação. Com coragem, altivez e preparo, continue se fazendo ouvir! Caso o sarcasmo nos debates, a retaliação na esfera social e os ataques pessoais sejam sistemáticos, aí você está diante da patrulha e precisa pensar no que fazer. Em primeiro lugar, busque informação. O que está acontecendo está dentro da legalidade, ou seja, as leis do país protegem esses atos ou os condenam? Pois às vezes temos a impressão de que a universidade se encontra num mundo paralelo, mas isso não é verdade. Todas as leis do país valem nos campi universitários também. Busque se inteirar do estatuto de sua instituição e do seu código de ética, mais exigentes quanto ao respeito e a normas de conduta do que as leis universais. Em resumo, busque compreender o marco legal e institucional do seu ambiente. Busque também se informar sobre as profundas raízes inquisitoriais nacionais, lendo sobre a Inquisição, sobre os períodos de exceção republicanos e sobre as patrulhas ideológicas contemporâneas.
Caso, no seu entendimento, o que está acontecendo com você ou com algum colega é reprovável de acordo com as leis do país e as normas de sua instituição, então é hora de agir. Você pode buscar uma solução individual, tal como afastar-se daqueles grupos patrulhadores e buscar o seu universo de interlocutores. Não é sua obrigação melhorar a vida acadêmica, e você não tem que “curar” ninguém da patrulha; isso é tarefa dos professores e gestores. Simplesmente deixar a patrulha falando sozinha pode ser uma ótima alternativa. Considere.
Caso precise conversar com alguém para obter apoio ou para compreender melhor o que se passa, busque professores e gestores em quem tem confiança. Seja objetivo sobre os fatos e deixe claro o que espera deles, se quer apenas conversar ou se quer que eles encaminhem a denúncia. Não use a questão da patrulha de modo leviano, para justificar dificuldades no curso; isso pode prejudicar quem realmente está enfrentando o problema. Fale também com seus pais e familiares. Um olhar de fora pode ser importante para avaliar a dimensão do problema e traçar estratégias para enfrentar.
Caso o problema esteja não apenas dificultando o livre debate, mas prejudicando o seu desempenho acadêmico, aí considere fazer uma denúncia formal, por escrito, ao comitê de ética de sua instituição, se houver, ou aos dirigentes de sua instituição, sejam os dirigentes locais ou ao dirigente máximo. Você também tem direito de fazer valer seus direitos através de mecanismos legais; peça orientação a um advogado que vai orientar você quanto aos custos e benefícios de uma ação legal e aos órgãos aos quais deve recorrer.
Considere também botar a boca no trombone, se você se sentir confortável com isso. Descrevendo de modo objetivo o que aconteceu e quais as consequências para você, e publicando em seu blog e enviando aos jornais, você pode estimular o debate sobre a patrulha e acabar promovendo uma discussão saudável sobre a qualidade do debate público. Cuidado em seus texto para não cair em armadilhas, demonizando grupos ou pensamentos você mesmo: seja objetivo quanto aos fatos e as consequências. Claro que entrar no debate público tem um custo, mas o benefício pode ser alto. Caso você encontre respaldo no seu Centro Acadêmico ou em professores, considere participar da organização de um ciclo de debates sobre o assunto, o que pode sinalizar à comunidade acadêmica quais as normas de uma conversa civilizada.
Em último caso, considere pedir transferência para outro curso ou faculdade, pois ninguém merece ser discriminado apenas por pensar ou ser diferente. Também há um custo, mas se a situação for intolerável não há por que se submeter a ela. Ou seja, a patrulha não deve ser aceita como um fato natural da vida acadêmica. Não patrulhe, não se deixe patrulhar.