Contando a crise

Dei entrevista para a Whitney Eulich, Latin America Editor do The Christian Science Monitor, falei mais ou menos o que se segue:

Não há risco à democracia, todos os atores importantes aceitam as regras do jogo. Quem pede intervenção militar é irrelevante e quem acusa pedidos de impeachment de golpismo está apenas usando retórica. Todos sabem que os protestos e eventual processo é legítimo, que cabe ao congresso a decisão e estão agindo tendo isso como panorama geral.

Dizer que impeachment é frescura de latino-americano, que qualquer espirro do presidente já vai pedir impeachment, é condescendência. Os EUA já tiveram pedidos de impeachment, e a AL tem mais pois são mais países; precisaria ver quantos pedidos por país tem para comparar média. O que temos são mecanismos de representação imperfeitos, e que os descontentamentos aqui talvez se acumulem por mais tempo até haver respostas institucionais, e por isso os protestos são mais espetaculares. Além disso, esse caso de corrupção é o maior do mundo, compromete a gestão da União, que no Brasil tem enorme importância, e portanto o descontentamento é realmente ímpar. Não há, portanto, diferença cultural, apenas realidades distintas. Patético foi o pedido de impeachment ao Clinton, isso sim.

Dilma não é culpada além de reasonable doubt, mas o que se espera de um chefe de Estado e governo não é não ser culpada além de reasonable doubt, como um cidadão comum. Então as contas de campanha, membros altos do partido, estatais e ministérios contaminados pela corrupção são fatores legítimos de pedidos de impeachment, que é uma decisão política a cargo do Congresso. Os congressistas pensam estrategicamente, em seus partidos e carreiras, mas também no futuro do país, e em última instância estão vendo o que é melhor, esperando as investigações avançarem, mas vão decidir pelo que acreditam ser a melhor solução, levando em conta todos os fatores, inclusive a opinião pública. É uma decisão política, e não penal.

Além da crise econômica e política, há também uma crise simbólica. Artistas, intelectuais se colocaram como mediadores entre o mito Lula e o povo desassistido. E agora o país mudou, o mito foi questionado pelas investigações e, ontem, pelo boneco que chamou a atenção de todos, com roupa de presididário. E a narrativa do povo desassistido também foi questionada pela pujança econômica e pelas verbas concedidas aos movimentos sociais. Qual o papel nosso hoje? Estamos meio à deriva. Não temos ainda um discurso liberal articulado e o esquerdismo ilustrado está sendo severamente questionado. Precisamos nos tornar mediadores de outra natureza, levando em conta o desejo de uma administração moderna por parte de um público autônomo.

Ela perguntou muito do impeachment, como se fosse algo anti-democrático se não houver uma culpa penal irrefutável cometida pela presidente pessoalmente. Eu disse que a questão é se ela está governando, o que envolve ter um plano de governo, tanto macroeconômico como políticas públicas, capacidade de negociar com o congresso e falar com a sociedade. É sério ter uma pessoa sem ação gerenciando o país, e em especial num país onde o governo central conta tanto. E para quem se preocupa com a democracia, é mais sério ainda ter alguém usando o poder para melar investigações, enviando Ministro da Justiça em conversas secretas, por exemplo. Nesse sentido, as manifestações são fundamentais: sinal de que a população não vai aceitar o impedimento das investigações, de modo violento como na Argentina ou menos violento, como em geral acontece aqui. Os protestos são importantes para dizer não ao fim da Lavajato.

Também falei da questão partidária no Brasil: novas lideranças preferem sair dos partidos, como Marina e Marta, do que se engajar em lutas internas. Dilma foi a escolhida pelo Lula, apenas isso, sem concorrência de outras candidatas que aceitaram esperar na fila ou buscaram outras legendas. A falta de democracia e transparência interna partidária é ruim para o sistema político como um todo; a corrupção do PT é ímpar, mas esse drama atinge todos os partidos. Acho que foi mais ou menos isso o que disse.

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