Estou apaixonada novamente. Meu último amor foi Yoram Kaniuk, que passou loucos anos em Nova York e depois escreveu sobre eles como se estivesse apenas te lembrando, uma amiga daqueles tempos, de tudo o que passaram juntos. Com Kaniuk aprendi que já nos anos 1950 havia israelenses por tudo quanto é lugar no mundo, algo estranho pois o país nem tinha feito Bar Mitzva.
Agora é Arthur Schnitzler, vienense da geração, fazendo as contas, de meus bisavós. Do jeito que o cara era cafajeste, e com atração por mulheres inteligentes, vai ver ele até é meu bisavô. Vi que na internet há mil ensaios, cada um destacando um aspecto da obra dele, não sei se acrescento algo. O primeiro livro que li foi “Senhorita Else”, comprado naquela livraria perto de NYU, me lembro o dia, o que é estranho pois não tenho fetiche de livro. A capa preta, o livro pequenininho como eu gosto. Amei. Não li mais nada, apenas amei o livrinho, como amei “Max e os Felinos”, achando que nada mais é necessário.
Depois veio o filme de Kubrick, que também gostei muito. Só não digo amei pois o romance, que li agora, é tão sensacional que o filme perde um poudo do brilho, o filme vira um policial americano. E o livro fala da indiferença daquele homem diante das mulheres, das mulheres concretas com quem ele convive, em favor dos momentos fugazes de encontro com outras mulheres, ou com fantasias de mulher.
E aí li O médico das termas, e o brilhante Tenente Gustl, o primeiro livro escrito em fluxo de consciência, mas para mim, o que é mais legal, o primeiro romance escrito por um judeu com um protagonista anti-semita. Quem é que consegue entrar na alma de um f…-da-p…? Acho isso um tipo de milagre literário, deveríamos incluir isso em algum calendário judaico religioso. Leiam se não acreditam, o autor sem desprezo pelo protagonista, sem estereotipos, tratando-o como um ser humano comum, um personagem respeitável, nos mostra a alma do anti-semita.
O Tenente despreza gente como Schnitzler, é um humor muito fino isso, a alma dá risada sem que o corpo nos siga em gargalhadas. E há uma estranha generosidade em retratar sem rancor um tipo detestável como Gustl.
Agora, esse “Caminho para a Liberdade” é um espetáculo à parte. É uma facada. Escrito em 1908, disseca o antissemitismo cotidiano e crescente na Áustria, eu não tinha idéia de que a coisa era tão capitar assim. Você tinha? Eu pensava que meu avô era um gênio por ter pulado fora depois da Primeira Guerra, mas no livro também um oficial do exército come o pão que o diabo amassou, um deputado é ofendido em plenário, a coisa fedia geral.
Há trechos que são – desculpe Simmel – melhores que qualquer análise sociológica que já li. A absoluta indiferença de todos por tudo, os indivíduos plainando sobre uma realidade vazia onde às vezes uma emoção genuína desponta, para depois ser suprimida pelos pensamentos cotidianos, pelas ambições, pelas convenções. Todos estranhos a todos. O alívio quando o contato humano cessa. As tiradas antissemitas do benévolo barão, protagonista do romance, são maravilhosas. Ele não é um sujeito asqueroso como Gustl, mesmo porque sendo barão não precisa competir com ninguém, não precisa pisar em ninguém. Mas não pode deixar de se irritar com aqueles seres estranhos com quem convive, sempre cheios de análises sobre tudo: “É um judeuzinho mesmo. Mas será que não está com a razão?”
Não há ficção no romance. Os personagens criam suas fantasias, sonhos, óperas, peças de teatro. Mas eles são reais, especialmente os homens e talvez Else também. Therese também? Não sei. Uma revolucionária que também, como todos, vive num teatro. Mas Else talvez exista, no meio de tantas mulheres sucessivas. Não sei como o livro acaba ainda, será que ele “fica” com Else? Não necessariamente, pois a mulher com quem o médico das termas fica no final é a mais desimportante de todas, a que menos lhe diz qualquer coisa. A vida é um acaso, ele parece dizer. Somos estatísticas, por um lado soltas num mundo indiferente e por outro ainda presas às tradições, nas quais nem botamos fé.
Leiam e depois me digam, se esse livro não é maravilhoso. Não sei se é literatura, não sei se ele cria um universo paralelo. Mas revela um mundo para mim, e o explica melhor que um tratado de sociologia, um mundo de onde eu vim, e de certa maneira um mundo onde ainda estamos.