Por alguma razão, tive muitas tias avós, que foram parte de minha infância em maior ou menor grau. A tia Leonor, a tia Maria Luísa, a tia Tuba, a tia Polinha, a tia Adélia. Judias e católicas, letradas e cozinheiras, de óculos ou rímel, casadas e solteiras. Não posso me queixar de não ter tido, nessas tias avós, todos os modelos possíveis para ser mulher, mesmo que com as tias eu não tivesse assim um leque tão amplo e fascinante de figuras humanas.
Com a tia Maria Luísa eu montava a árvore de Natal todos os anos, atividade que eu esperava com gosto, ainda mais que os enfeites que ela não usava eu podia levar para casa para enfeitar a minha. Era uma casa antiga, no Jardim Paulistano, que merecia aquela árvore grande e pujante, ao lado da mesa de trabalho onde a tia Maria Luísa sempre montava um puzzle difícil. Onde anda aquele bordado gigantesco, com uma faixa ondulada como se fosse uma serpentina dobrada?
Um bordado modernista, uma contradição perfeita.
Naquela casa, eu já contei antes, minha mãe era bem recebida. Nos outros lugares ela era admirada, até adorada. Mas na casa da tia Maria Luísa a coisa tinha um outro caráter. Ela mesma era bem recebida, e não as máscaras de moça popular e engraçada que ela usava fora dali. Ela nem fazia piada, mal falava. Apenas bebericava o whisky que aparecia em sua mão assim que sentava, e ficava assim até o cair da noite, quando íamos embora, ficava com um meio sorriso no rosto, assentindo com a cabeça ao que os outros diziam, apenas sendo ela e sendo amada sem esforço algum, a chamavam de Tota, não sei por quê.
Eu era criança e achava aquilo intrigante, e agora apenas me passa pela cabeça o quanto as pessoas populares se aprisionam em sua popularidade, o quanto no fundo tão raramente podem ser elas mesmas, o sofá de couro, a poltrona na casa do tio Jaime e da tia Maria Luísa.
Sim, pois a casa era também do tio Jaime, é dele que queria falar, como parte de minha série sobre os homens da minha família. Ele era pequeno e tinha uma voz um pouco aguda, me lembro de minha mãe falando que quando ligava para o tio Jaime e alguém atendia, ela dizia: “Tio Jaime?” Não, aqui é a Maria Luísa. Ou então: “Maria Luísa?” Não, aqui é o Jaime. Tio Jaime era o único membro da família que levava a sério minha natação. Perguntava dos tempos, falava de grandes nadadores, era realmente o único.
Separou-se da tia Maria Luísa para ir viver com a Dolly, uma antiga namorada de olhos muito bonitos, que cheguei a conhecer. Maria Luísa nunca o perdoou, e com razão. Uma vida toda juntos, três filhos, uma casa que era aquele paraíso de receptividade, e ele simplesmente dá no pé? Ele tinha suas coisas lá, as ferramentas, as máquinas, a casa inteira era um grande hobby. Por que se separar? Ele também tinha razão, pois a vida é curta, e talvez ele tivesse uma história para terminar com a Dolly, que sei eu?
Mas antes disso, logo antes de eu ir para Israel, ele me perguntou uma coisa que ficou na minha memória. Na hora me pareceu insólita, mas hoje acho tão sábia.
– Lozinha, me diga uma coisa afinal. Onde fica Israel?
E emendando, como se isso não ajudasse em muito:
– Fica na Palestina, não? É a Palestina?
Eu respondi, já na faculdade, já depois de ter aposentado o maiô, que ficava no fundo do Mediterrâneo, na parte mais ao leste. Para mim, era lá que ficava, não me veio nada melhor na cabeça para dizer.
Mas a pergunta ficou na cabeça. Onde fica Israel? Fica aonde? Hoje falam de lugares ancestrais, de origens bíblicas. De fato, vivem cavocando nosso passado como um oncologista busca metástases, sempre algo a mais para ser remexido, extraído e analisado.
Para o tio Jaime, o lugar não era tão claro, e a relação com seus antepassados devia ser menos ainda. Para mim, era um lugar geográfico, visitável. Mas onde fica mesmo Israel, a pátria, o lugar onde estamos entre nós, onde podemos nos jogar sem armaduras nem máscaras, esse é um lugar difícil de achar. Onde fica? Para minha mãe, era aquele sofá de couro, aquela poltrona da casa do tio Jaime.
Depois tio Jaime faleceu e eu, por conta do trânsito, perdi o enterro. Minha mãe não me perdoou. A tia Maria Luísa também não foi, pois o enterro, para ela, tinha sido uns anos antes. Mas quando vou ao cemitério deixo uma pedrinha para o tio Jaime, e da próxima vez vou contar, afinal, onde é que fica Israel.