Quando acabou a inflação, minha amiga mais brilhante, a Karla Krepsky, disse o seguinte: “Agora podemos discutir os caminhos do Brasil pois antes a inflação monopolizava o debate público.” É raro alguém sintetizar um momento deste modo, falando com tanta precisão das relações complexas entre sociedade, economia e política. O fim da inflação trazia um tempo livre, um tempo mental onde não precisaríamos calcular diariamente nossos investimentos, onde estávamos ao mesmo tempo encurtando o longo prazo e ingorando-o.
E durou bastante, tendo nós aproveitado esse tempo livre ou não.
Acredito que os protestos de junho foram, digamos, o fim da “inflação política”. Por um breve instante, o Brasil pode discutir seus caminhos. Mesmo a indefinição do movimento ajudou – foi crucial – para que nós parássemos e pensássemos para onde iríamos. A ausência de sindicatos, movimentos sociais consolidados, partidos, lideranças e celebridades foi o equivalente ao fim da inflação. Certos ou errados, vimos nos movimentos um “nós”, um “eu podia estar lá”, “eu posso fazer política”, “eu posso parar a cidade”.
E o resgate do pronome em primeira pessoa é um pressuposto da boa política.
E os políticos, eternos “eles”, ficaram sem chão. Não vi ninguém genuinamente tentando assimilar o que havia acontecido, o que não quer dizer que não tenha havido casos. Apenas não vi, não chegou a mim, não li nos jornais, não ouvi falar nem vi na internet.
Mas o fato de esse sistema político todo ter sido heroicamente ignorado nos protestos não significa que ele não exista mais. E o fato de esse sistema político ter por sua parte ignorado os protestos não significa que ele é passivo, que ele não percebeu os riscos que corre:
Participação mais ativa do cidadão; volta aos “issues”, como dizem os americanos, às questões relevantes da vida; organizações políticas menos hierárquicas e portanto com menor mediação; maior transparência e prestação de contas; regulamentação melhor justificada; e assim por diante.
Eu tinha imaginado, para esse encontro entre uma nova participação pública e a política comum, alguns cenários. Um deles era o de que tudo voltaria a ser como antes, e parece que é para ele que a coisa se volta no momento. Mas não tinha percebido como era necessária habilidade política e ação deliberada para manter tudo como está. Achei que a coisa simplesmente ia esmorecer e pronto.
Nas últimas semanas, os jornais deram muito destaque para as articulações entre Marina e Campos. O que mais me surpreendeu foi o tom elogioso, ou melhor, admirador, dos comentaristas que eu respeito, tal como a Dora Kramer e mesmo um grande amigo meu, Felipe de Holanda. Golpe de mestre, disseram. O único golpe de mestre que você pode dar às 3 da manhã é levantar para tomar água e não derrubar nada. Fora isso, o melhor é dormir para no dia seguinte estar com a mente limpa e de fato poder pensar.
Todos ficaram estupefatos, e eu não conseguia compreender com o que a estupefação. O que há de brilhante em criar uma chapa pra presidente com menos afinidade do que Fernando Collor e Itamar Franco? Talvez a chapa seja melhor que Jango -Jânio, tá, mas isso porque na época o voto era separado e além disso as condições sociais bastante instáveis. De onde a cara de alegre de um e de outro, quem foi vencido nesse processo? Que vitória foi alcançada contra o crack nas grandes cidades, a exploração de imigrantes, a má qualidade das escolas públicas, o descontrole inflacionário, a poluição ambiental e as filas dos hospitais públicos? Muita alegria pra pouco resultado.
E poucas críticas, mesmo dos adversários. Sabe quando alguém faz um gol e mesmo os adversários vêem a beleza da coisa? Pois fizeram todos cara de gol bonito. Que gol? Me diz, que gol marcaram, contra quem? Só fiquei eu indignada com uma decisão ou tomada muito antes na surdina ou tomada às 3 da manhã na surdina, mas de qualquer modo uma decisão importante tomada na surdina? E não falo aqui de pragmatismo, pois pragmatismo tem que haver, de modo muito claro, em negociações com princípios claros para todos, ainda que no detalhe e momentaneamente secretas. O que há de brilhante em, num momento em que todos pedem participação, dar uma banana à platéia e fazer o que dá na telha sem nem piscar os olhos?
Hoje acordei pensando nisso, nesse descompasso entre meu sentimento de desgosto e essa cara de gol bonito do estádio, até ouço o “Uooo…” vindo do Pacaembu.
É que com essa coisa toda os políticos voltaram à ribalta. É simples assim. O gol foi em nós. A inflação voltou, e estamos falando da vida deles e não do condomínio que temos que pagar no fim do mês. Dos acordos mágicos e não do futuro da educação superior no Brasil. Eles voltaram com tudo. Falamos de quem são os grandes artífices do nada e não como lidar com o transporte público.
Foi brilhante. Estamos em outubro e já esquecemos junho. Agora é assim mais 12 meses, 12 meses de paralisia, de nada que de fato importe. 12 meses de fofocas que só encantam jornalistas que amanhã serão assessores de imprensa e os próprios políticos. A Dilma disse hoje que os candidatos precisam estudar. Ela está certa, precisam. Mas pra que estudar, se eles já reconquistaram o seu lugar privilegiado no palco? A questão não é quem serão os perdedores dentro do jogo, se Aécio ou Dilma. A questão é que todos nós perdemos um espaço que os jovens – eu fiquei de espreita, não participei, o mérito não é meu – tinham conquistado.
Individualmente, Aécio e Dilma podem perder. Mas, como classe política, ganharam. A volta da inflação política.