Meu pai, professor

Pra começar, uma história que me contaram ontem sobre meu pai, que não vai espantar ninguém que o conheceu.

Na Belas Artes, um dia os alunos não paravam a algazarra e não faziam o exercício proposto por meu pai. Quem narra é um jovem professor, na época designado para ser assistente do meu pai. Meu pai: “Agora chega! Se vocês não estão fazendo nada, prova!” Os alunos reclamam: como prova? não pode ser, não foi avisado, etc. “Prova sim, e já! Podem ir começando, a autoridade aqui sou eu e a nota da prova vai compor a nota final de tal e tal modo.” Os alunos fazem silêncio, sentam-se calados, olham as questões na lousa.

Fazem a prova. Sei que a história é fidedigna por um detalhe: o assistente reclama de carregar tantos livros, tanta coisa, e sei que meu pai ia carregado para as aulas.

O assistente vai à sala dos professores com meu pai, carregando as provas. Escola particular, tudo é superlativo. Turmas de 60. Lá, ele pergunta: “Pait, onde coloco as provas?” Meu pai, imagino olhando sério para o moço, sem expressão definida:

“Joga no lixo.”

Como disse, quem conhece o meu pai já sabia do final logo no começo. A autoridade era uma persona para ele, que ele até poderia exercer momentaneamente, mas não era ele. Então, findo o teatro, era hora de tirar a maquiagem. Podia exigir uma prova como reprimenda ao descaso. Isso sim. Daí a ter interesse no que os alunos haviam produzido sob pressão era um fosso.

Essa história agora surpreendeu quem melhor o conheceu, seus filhos. Pois eu tinha meus 8 ou 10 anos, meu irmão 4 anos mais. Brigávamos. Meu pai levantou a voz e disse: “Agora chega! Felipe, vá lá pra cima! Lô, você fica aqui em baixo!” E fomos, e a briga parou.

Nunca falamos no assunto, por vergonha. Havíamos feito meu pai levantar a voz. Minha mãe chegava em casa ao entardecer aos gritos, nos chamando de abutres e nos acusando de querer matá-la, o que traduzíamos por: “Filhos queridos, estou meio cansada depois de um dia de trabalho, será que poderiam arrumar a sala enquanto tomo um banho?” O que fazíamos com prazer, marcando o fim da tarde de brincadeiras.

Mas a fala do meu pai, por ser única, como um tablet antigo escrito numa língua desconhecida, ficou sem tradução.

Então se passaram 20 anos. E, não me recordo o contexto, quem sabe meu irmão o faça, meu pai solta essa:

“Mas uma coisa eu preciso dizer a vocês, uma coisa que tem me envergonhado esses anos todos e eu preciso me desculpar.”

Havia coisas que meu pai tinha feito que talvez merecessem explicação, então o olhamos atentos, e a atenção minha e do meu irmão, vocês nos conhecem, é intensa.

“Uma vez vocês estavam brigando e eu não sabia o que fazer e acabei mandando um para cada canto, que coisa.”

Nós nos olhamos. Os dois lembravam da cena perfeitamente. “Mas pai, foi certo, estávamos sendo inconvenientes, e você acabou com a briga.”

“Ah, mas não tratei vocês como gente. Tratei como idiotas. E isso um pai não pode fazer.”

E fica aqui essa história, que como disse nos surpreendeu a nós que o conhecíamos bem.

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2 respostas em “Meu pai, professor

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