Ruivas

Sei que sempre volto a esse tema, mas ser ruiva é algo realmente importante. Não é banal. Então na sexta enfrentei as forças públicas do banana do governador, as forças privadas de uns partidos sem voto e me embrenhei lá pros lados do Itaim, numa jornada que os bandeirantes à pé fariam em menos tempo, e digo: valeu a pena. Cheguei em casa ruiva como sempre fui.

Pois minha mãe adorava o meu cabelo, sempre me olhando embevecida e explicando: “Você é ruiva, mas não é ruiva clara. Suas sobrancelhas são escuras, suas pestanas são escuras. Você é uma ruiva escura. Meu setter.” E por que a insistência no escuro?

Soube quando uma sobrinha nasceu, muito ruivinha, nem clara nem escura, mais pro vermelho mesmo, minha mãe já ausente, por uma amiga dela. “Ah, que bola. Quando a Rosa estava grávida de você, eu perguntei se ela queria menino ou menina. Ela disse: ‘O que vier tá bom. Se for mulher, contanto que não seja ruiva.”

Era por causa de pinimbas com as irmãs do meu pai, ruivas.

E aí entendi que minha mãe ficou assim pela vida se justificando, talvez a Deus, por ter na frente aquela criança desajeitada e inteligente, filha, mais ruiva impossível, nas pintas, na alma, e ter antes querido qualquer coisa menos uma ruiva.

Então inventou essa coisa de ruiva clara e ruiva escura, que resolveu. E ela muito prática, ficou contente.

Para meu pai, eu nasci ruiva de tudo, e ele sentiu um enorme orgulho, pois o ser ruivo está associado ao judaísmo. Não sei se pela genética ou pela rebeldia, mas está. Para minha mãe, eu nasci de cabelos pretos que depois caíram e só aí que vieram os pêlos ruivos. Seu orgulho foi por eu ser mulher.

Para meu pai, judaísmo era algo visceral. Para minha mãe, algo racional. Um compromisso. Isso era o que era; o resto era pra inglês ver.

De qualquer modo, se me tiram as aulas e os orientandos, a gente se sente sem saber quem é. O que é um ator sem público? Fica se achando um b… Então o que eu precisava era de um banho de ervas fedidas que a cabeleireira me garantiu: “Depois de lavar, o que pega é o vermelho. Esse verde não.” E sai na piscina? “A fixação é boa.”

Aí a sobrinha ficou bem clarinha, e nasceu outra, como eu, ruiva escura, repleta de sardas. Somos três ruivas. “Olha só, pai, três ruivas!” Meu pai olhou para mim e decretou: “Você não é mais ruiva.” Caramba. Assim, de repente, depois de meros 30 anos, não ser mais ruiva? Sacanagem. Em parte, verdade, o cabelo vai desbotando mesmo.

Em suma, ser ruiva é algo essencial nosso, mas se a gente não cuida a coisa vai pro brejo.

Agora, eu queria ver a cara dela, se visse a mais clarinha de nós três, com os cílios transparentes de loiros, que eu até compro rímel marrom, a que tem a cara e o caráter mais próximo da avó. Queria ver o que ela ia falar. A coisa da ruiva clara e escura não ia funcionar, nenhum truque lógico. Só ia funcionar mesmo um daqueles sonoros puta-que-o-pariu.

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