Um navio atracado

Quando é que a gente olha nos olhos de alguém e pensa: “quero ser amigo dessa pessoa”? Amigo no sentido muito profundo da palavra, amigo de fazer coisas juntos pelo mundo afora e pelo transcorrer da vida. Eu acredito em amizade à primeira vista.

Acho que gostei primeiro dos meus amigos que eles de mim. Acho que tenho esse olhar especial, de ver tudo o que virá. “Olha, Renata,” eu poderia ter dito há exatos 33 anos, pois nós nos conhecemos numa competição de natação em homenagem ao dia das mães, “você pode ser amiga da Soninha o quanto for, mas não adianta, nem tente ir contra, você nesse seu maiô com essa ridícula costura branca nas costas, eu sou sua melhor amiga.”

E com o Felipe de Holanda a mesma coisa. Ele contabiliza nossa amizade desde 1987, algo assim. Mas ele já era meu amigo quando nos encontrávamos no saguão da FEA um ano antes, aqueles olhos verdões que deixam os meus brilhando só em pensar. Já éramos amigos pra sempre. O Maranhão é longe, senão eu o veria mais. A vida. A Hebraica é perto, então vejo a Renata sempre. Nossa casa. Seria bom se eu e o Felipe tivéssemos virado professores da USP, mas não foi assim.

Um tempo atrás encasquetei que ia conquistar um carinha da Hebraica, “já que tinha conquistado o Felipe e a Renata”. Ia trazer para o meu mundo. Mas não tinha conquistado ninguém, apenas tinha cheirado a amizade antes deles. Me dei muuito mal. Ele escrevia assim, muuito bem.

E outro dia pensei que tinha me enganado e que um amigo não gostava de mim mas no final gostava. Só não gostava dos meus contos, isso é que me confundiu. Depois ele se arriscou numa dessas enchentes em São Paulo para me fazer companhia numa reunião esquisita. Então é isso. Eu não me engano, mas não adianta inventar moda.

Às vezes a amizade acontece assim com um desconhecido. Mas às vezes acontece com alguém que está ali o tempo todo, e de repente sentimos um carinho de amigo por aquela pessoa, como quando uma vez no elevador minha mãe percebeu que não tinha me botado os sapatos e que eu não podia sair na rua de botinhas de lã de ficar em casa e apertou o botão do elevador de volta e eu a olhei com um enorme carinho por seu modo apressado mas – veja você – quando contei isso para ela um tempo depois ela nem lembrava, o que mostra que virei amiga dela antes de ela ter percebido que eu ia dar uma boa amiga.

Com minha sobrinha também, um dia sentamos num banco em frente a um lago coberto de neve e vi que ela estava se tornando uma mulher muito interessante, com aqueles olhos cheios de vontade de viver e de pavor também. E de repente pensei: ei, quero ser amiga desta pessoa. Às vezes acho que sou uma amiga para ela, mas às vezes acho que sou uma estrela.

Tenho essa mania assim de agradar os amigos como se fosse um cachorro bem comportado. Gosto de lhes fazer comida. Eu gostava tanto – precisava tanto – ver o Felipe que às vezes ele me deixava esperando horas e quando ele chegava eu estava feliz e pulava e abanava o rabo e pronto. Estava com meu amigo. O melhor dos amigos, claro, é dar risada. Amigos que me fazem rir – tantos, tantos – estão no meu coração para sempre. Lembro dos lugares onde eles me jogaram no chão de tanto rir, onde eles me constrangeram, onde eles me contorceram.

Comédias são coisas boas para ganhar dinheiro, mas rir é coisa mais íntima, para se fazer com gente de quem se gosta. É minha opinião. E fazer rir também é bom. Muito bom, até. Com as amigas, também é muito bom fofocar, podem achar isso feio, mas é bom e não abro mão.

Mas quando é, quando é que a gente olha para uma pessoa e percebe que quer andar junto no mundo com ela, e que quer o bem dela, e que quer dar risada junto e fazer coisas junto, e que não vai achar nela as coisas que nos outros seriam ridículas? E que vai querer estar do lado dela para quando a coisa apertar, mas que vai também querer tê-la do lado quando a coisa apertar para você?

Não é que em todo amigo a gente confie completamente; tenho um amigo que podendo me passa a perna em pequenas coisinhas, na conta do restaurante, no câmbio e coisa e tal. Mas um dia eu o skypeeie, de uma cidade lá pros lados de Ohio, e disse: “Olha só, eu sou brasileira!!!” E ele riu à beça pois também ele uma vez havia encontrado sua identidade latino-americana, sofrida e maltratada, num rincão americano. É meu amigo.

Talvez a amizade seja um tipo de relação, não sei o que já disseram os filósofos. Derrida e tal. Mas pra mim amizade é um ingrediente das relações. Pode haver amizade entre avós e netos, pode haver amizade junto com o desejo, e pode haver amizade entre professor e aluno. Numa viagem, vamos começando relações, repensando as que temos. Pensamos também nas inimizades, nas relações que atrapalham nossa vida e atravancam nossa mente.

Mas, convenhamos, aqui entre nós, a nível de fofoca apenas, não passe adiante para não magoar ninguém, as inimizades tornam as amizades mais coloridas, mais necessárias, até melhores. Então viva a amizade, e quanto às inimizades, quando tiver oportunidade conto pessoalmente, pois aí é muito melhor. Agora, as amizades são mais complexas, mais interessantes. Os inimigos ficam tentando atrair nossa atenção, nos criando armadilhas, e às vezes conseguem que pensemos neles, que “obcequemos”. Mas desta obsessão sobra apenas… apenas as tardes com os amigos falando dos inimigos. Desistam de ser importantes para nós.

E os judeus? Os judeus vivem brigando entre si pois são amigos involuntários. Têm a mesma visão de mundo e um destino comum, e isso os obriga a serem amigos, mesmo que falte o afeto e a concordância. Olhamos nos olhos um judeu com quem não simpatizamos e ele nos olha de volta e ficamos os dois exasperados, pois temos que seguir juntos e, pior, construir coisas juntos.

Mas são poucas as amizades verdadeiras involuntárias. Em geral o que se tem é coleguismo, que é outra coisa. Algo frio, no máximo irritante ou levemente prazeiroso, mas não exasperador. Eu tinha um amigo que chamava a todos de colega, e isso já deveria ter me dado a dica que nunca mais o veria depois que nossa relação profissional acabou.

Com meu pai foi diferente. Vou me alongar, respire. Com meu pai demorei a vê-lo como amigo. Estava um dia à toa, como quem escreve um doutorado, e meu pai me pediu para montar umas esculturas que ele havia vendido para brindes de fim-de-ano. “Mas o que eu tenho que fazer?” Ele disse: “Vou fazer a primeira, e depois você copia.” Ele me mostrou e era bem fácil. Então ficamos montando esculturas em série, e depois perguntei se ele queria ajuda para levá-las e ele disse que sim, pois aí em dois ele não precisaria estacionar o carro. Então a tarde foi essa, e ele me agradeceu muito e disse que aquilo havia sido muito importante para ele. Mas muito mesmo, eu não imaginava como.

Para mim, era só uma tarde preenchida no ócio da pós-graduação; apenas o agradecimento foi memorável, pois não entendi a razão, que agora explico: é que ele viu ali que eu era uma amiga. Que de algum modo eu morava no mesmo mundo que ele, no mundo das peças que se criam, se encaixam, se entregam. E então ali – eu com meus 30 e ele com seus 70 – virei amiga do meu pai. Antes era um amor, uma adoração que francamente acho que a Puppy, sua cadelinha Poodle, também recebia. Pois o amor é algo sucessivo, transferível. O amor é mais um estado de espírito que uma relação mesmo.

E assim faz sentido que quando me despedi uma vez indo para os Estados Unidos ele disse que teria saudades das nossas conversas, e eu respondi que ele tinha tanta gente em volta para conversar, e ele disse que não era a mesma coisa. Que falar comigo era especial. E depois de umas semanas telefonei para ele e disse que estava pensando em fazer um pós-doc em Israel, na época em que as bombas em pizzarias apenas começavam a rarear. Isso na quarta; no sábado ele já estava morto. Não me culpo, pois como é que eu ia saber que era amiga do meu pai? Mas o perdôo, pois perder um amor é muito chato, mas perder um amigo é perder o chão e assim que foi.

Logo em seguida, começando a carreira, é que vi nele um ótimo amigo, que me confortou nos concursos e tudo o mais. Nossa, o quanto falamos mal de todo mundo!

Pois meu pai era um cafajeste às avessas. Por detrás do brilho e da sedução se escondia uma pessoa muito bacana. Uma pessoa distinta, ele diria. Engraçado como as palavras que usamos nos revelam…

De meu pai é isso.

Com os homens acho que as coisas nunca deram certo antes pois eu ficava os idolatrando, querendo entrar em seus mundos distintos (separados, e não corretos). Nunca me ocorreu que um deles pudesse ser um amigo. Ter um mundo em comum.

Então é isso, a amizade. Um navio largo, lento e pesado atracando no porto.

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