Vou precisar de 30 anos

Era difícil entender, adolescente, aquela mania teatral de meus pais de cumprimentarem os funcionários por qualquer coisa que fizessem. Tá, o almoço tava bom. Mas a Terezinha não era cozinheira? Não era pra fazer bons almoços que ela estava ali? E depois, o almoço estava idêntico ao da semana passada, e da outra ainda. Era bom. Isso era. O frango assado ao mesmo tempo tostado e úmido, o aroma do alho sem o sabor forte, os louros picados penetrando na carne macia, era bom. Concedo. O frango era bom. As batatas ao redor, a tesoura de frango cortando tudo e todos mudos à mesa, era bom. Mas era para depois do almoço pedir para a Terezinha vir à sala, e dizer tudo isso de três modos distintos, invocando a cozinha da Dona Fanny e tudo o mais? Eu não entendia.

E hoje, depois que a Renata dissertou ao telefone sobre a questão da representação e do espaço na era digital, eu desci um pouco o nível da conversa e perguntei: “Escuta, queria comer uma daquelas saladas espetaculares, onde é que vou?” Debatemos o assunto e decidi que o melhor seria o Vienna do Iguatemi. Era um dia de folga que eu me dava, depois de duas semanas de trabalho contínuo. E fui comer no Vienna. Prato de saladas, com um tipo dum cuscuzinho de quinua, ceviche de salmão e outras coisinhas gostosas. Depois bobó de camarão, um peixe todo cheio de coisa e um tal de bacalhau espiritual, que é bacalhau mas feito de um jeito leve.

E pra completar um docinho e um manjar. Pronto.

Quando veio a conta, disse à garçonete: “Ah, queria te dizer, estava tudo um espetáculo!” Ela se surpreendeu. “Puxa, que bom ouvir isso, esse ramo de restaurantes é meio difícil.” Difícil por que? “Ah, tem que trabalhar fim-de-semana, e a gente nunca sabe se o que faz é reconhecido. Estava bom mesmo?” Estava uma delícia. Eu queria uma bela salada, não venho sempre aqui, foi um presente que me dei. “É, comida é algo pessoal. Ou a gente gosta, ou não. Que bom que você gostou!”

Tenho reparado mesmo, todo mundo quer reconhecimento. A faxineira do prédio. O deputado em terceiro mandato. O aluno. O amigo. O amante. A sobrinha. Todo mundo quer ser apreciado, gostado, se sentir especial, e na pressa ninguém é. Somos cobrados e cobramos. Experimenta entrar no prédio, sem ser Natal nem nada, e dar uns presentes para os porteiros, agradecer todo o cuidado com que eles tratam o prédio e os moradores. Você vai ver o que eu estou falando.

Outro dia vi com as sobrinhas o filme “Footnote”, que não ganhou o Oscar por, como disse, não ser filme, ser outra coisa. Na melhor entre todas espetaculares cenas, um jovem pesquisador dá um empurrão num velho pesquisador por conta de uma disputa de prêmios acadêmicos e ele sangra. Um terceiro diz: “Vamos dar a devida proporção às coisas.” O velhos responde: “Essa é a devida proporção das coisas.” A sobrinha mais velha declarou: “Vou precisar de 30 anos para entender esse filme.” Eu comecei a explicar que o filme era uma luta pelo reconhecimento…

“Isso eu entendi, tia Lô. Mas para entender do que mesmo eles estão falando, vai demorar 30 anos.” Imagine! Em 10 anos você já vai entender!

Mas para elogiar um prato de comida me levou 20 anos. Levou ter fracassado e tido sucesso. Levou ter dado aulas boas e aulas ruins. Ter escrito textos que você quer apagar e outros que quer divulgar aos quatro cantos. Ter se esforçado e falhado e ter feito coisas incríveis sem uma gota de suor. E vice-versa. Várias vezes. E mais vezes ainda. Levou ter feito coisas banais e cotidianas, e coisas espetaculares e horríveis, sem nunca ter compreendido a fórmula exata de cada uma delas. Um esforço sistemático, ano a ano, projetos, relatórios, promessas, desculpas, prêmios, afagos e sala vazia. Aí vai a receita de um elogio verdadeiro a uma salada bem arrumada. Saber por experiência própria o quanto vai numa salada bem feita.

Então, sobrinha, te digo que estás certa. Não vão bastar 10 anos não. São vinte anos depois de formada. Então, 30 anos a partir de agora. Fez a conta certa, parabéns!

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