Me dei conta hoje, depois da piscina, que do meu avô, cujo sobrenome carrego, os filhos que não o conheceram se tornaram pessoas decentes.
A lembrança mais vívida que meu pai teve desse imigrante romeno era do cheiro nausante das flores, no seu velório. No mais, lembranças fotográficas: a criação de pombas. As polainas. Talvez um relógio. Meu tio Gilberto, de uma correção despropositada, nem isso.
Já eu lembro tudo do meu pai, inclusive do primeiro dia em que me deixaram tomar café depois do almoço, no bar do Peres lá na praia do Lázaro, e que perguntei a ele, ainda muito criança: “E o seu pai?” E ele respondeu que seu pai tinha morrido quando ele tinha 6 anos. E eu pensei que isso era muito jovem, e tomei o café em silêncio como se tivesse dado um passo à vida adulta.
Minha mãe sempre dizia: “Que segredo terá esse Pait, que ninguém fala dele?” De fato, ninguém falava de meu avô. Não que de outras pessoas falassem. Falavam mal de todos, mas não falavam de ninguém especificamente. Um amigo um dia comentou, não muito elogiosamente: “Essa família do seu pai parece aquelas dos quatrocentões.”
Entre os Dranger, da minha avó materna, se falava de todos. Se descrevia, analisava, resgatava, explicava, julgava, condenava, se ria e se desculpava e acima de tudo se pedia um tipo de audiência, de platéia, de testemunho. Estavam todos sempre prontos a contar, em voz serena ou aos gritos, com seriedade ou humor, as andanças dos antepassados. Mas não entre os Pait.
Outro dia uma tia disse que meu avô paterno viu que não ia dar conta de tudo e “se arrumou uma operação”, à qual não resistiu. Pode ser. Pode ser também que seja forma de dizer, pois das pessoas que morrem, entre os Pait, se diz que foi por não querer continuar servindo – uma espécie de pedido de demissão sem aviso prévio -, que é um modo a meu ver doente de lidar com a morte.
Esse “tudo” era a fábrica de móveis de meu bisavô, falecido logo antes, que também minha avó não deu conta. Meu avô era um homem bonito, parecido com os gangsters dos filmes americanos de época. Parece que era briguento. Ouvi duas histórias que apontam nesse sentido: uma discussão, coincidentemente com meu outro avô, e uma briga na sinagoga.
Enfim, entre as diversas personalidades que fazem parte de minha árvore genealógica, meu avô paterno nunca me atraiu muito, apesar do mistério. Casou por amor? Por amor ao conforto que a fábrica de móveis lhe deu? Seria possível alguém amar minha avó, que para mim era aquela senhora pequena e enfadada, de cabelos arrumados como um bolo preto, que nunca conversou conosco? Não tenho curiosidade em saber. Já pelo sobrenome tenho uma curiosidade abstrata, como se ele indicasse os descaminhos da minha tribo ao longo dos tempos. Pait.
O que me dei conta hoje, de modo completo, e que comecei a perceber no dia do café há quase quarenta anos, foi essa coisa mágica, de meu pai ter se construído como homem sem pai. Como é que fez na infância? Na juventude e na vida adulta? De onde tirou ser quem ele foi? Não foi do nada, claro. Como socióloga, sei que os papéis sociais estão aí pairando na sociedade, “na mídia” mas também no círculo familiar mais amplo, nos amigos, em tudo.
Mas foi meu pai que construiu esse modelo, mesmo que a partir de figuras reais e imaginadas que foi catando por aí. O tio Henrique, por exemplo, sem dúvida foi a presença mais importante, Henrique Mendes, casado com a tia Raquel. Tio Henrique que levava o meu pai ao consultório, onde ele ficava esperando e ouvindo os pacientes dizerem: olhe lá as aranhas subindo pela parede. Genial tio Henrique, psicanalista analisado em Londres, que não conheci.
Os tios todos, casados com as tias, nem tão geniais mas presentes e carinhosos. As figuras mundiais, Winston Churchill, pois era a guerra e os meninos tinham seus super heróis. “A coisa mais importante para um homem é o trabalho”, meu pai grifou no texto de Frank Lloyd Wright ainda muito jovem, e depois repetiu para mim, sem citar a autoria, como se fosse uma verdade sua, aprendida com um pai, sem se dar conta de que talvez isso magoasse uma filha. Filippo Brunelleschi, que meu pai homenageou dando-lhe o nome ao primogênito, antes mesmo de Miguel, o nome de seu pai.
E assim ele se tornou marido de minha mãe e meu pai. Sem professor. Ou catando seus professores nos livros, nos jornais, nas reuniões de família. Por isso, talvez, nunca tenha nos dado conselhos. Apenas dava sua opinião a posteriori. Quando saí do Unibanco, escutei: “Se você tivesse ficado, depois de 10 anos te davam um relógio.” Quando eu chegava das viagens vinha querendo saber as histórias. Me aplaudia – minha platéia mais entusiasmada – depois das vitórias, mas nunca me mandou ir por aqui ou por ali. Consigo ver agora a sabedoria daquele homem, que nunca teve pai e foi pai.
Claro que minha mãe se ressentia, pois as decisões ficavam todas a cargo dela. Além de cansativo, ela não compreendia: “pensei que ia ter do lado alguém como meu pai.” E no final teve apenas alguém que a inspirou e fez rir. Já eu não esperava nada, pois era filha e aquilo que se apresentava se tornava, por definição, o esperado. Não sei muito bem como concluir esse texto, não sei onde essa coisa se conclui. Numa espécie de compreensão, à la Dranger, desse pai que eu tive.
Meu pai,cresceu sem Mãe,sera isso pior?
Penso que sim,senão pior digno de nota,
se fosse eu,um professor,um alguém de quem se fala
mas não,sou apenas um trabalhador
pra mim esta bom.
Estaria bom pra ele também.
Está bom quando a gente toca a vida em frente, o que não quer dizer que não se possa olhar para trás e esmiuçar as coisas e buscar compreender como elas se dão. Tem gente que gosta de tocar piano, outros de futebol. Eu no momento estou buscando entender os homens da minha família.