Os elogios rasgados ao meu avô Leo Goehler vinham precedidos por uma espécie de “disclaimer”, um aviso: “Não era um homem muito inteligente; isso não. Mas…” E aí sim vinha um descrição admirada de um homem de grande força moral e coração gigantesco, da boca de filho, filha, nora e genro. E da viúva, minha avó Carlota.
O vô Leo era uma unanimidade, numa família cheia de opiniões.
“Eu gostava muito do seu Leo”, meu pai falava, quase solene, sem nenhuma ironia e nem mesmo aquela admiração infatuada que tinha por outras figuras humanas, da qual desconfiávamos instintivamente por conhecer seu modo pendular. “A dona Carlota era outra coisa, mas o seu Leo…”
Alguma simpatia meu pai também inspirava no meu avô, pois é através dele que conheço algumas histórias de guerra do soldado austríaco da 1º Guerra Mundial.
Minha mãe tinha verdadeira adoração pelo pai. Comemorava o nascimento e lembrava o aniversário da morte, citava suas frases, pensou que poderia ter se casado com alguém como ele e, quando se deu conta que isso não havia acontecido, tentou ser para nós um espécie de vô Leo.
Hoje, indo visitar as obras do apartamento de Higienópolis, comprado por ele de presente de casamento para meus pais, me dei conta do absurdo daquele aviso. Que inteligência não teria esse homem, meu Deus?
Não era exatamente falta de cultura. Talvez não fosse um artista ou um erudito, mas falava duas línguas com certeza, português e alemão, e talvez um pouco de ídish, polonês e algumas palavras tchecas. Depois da guerra, viajou o mundo em busca de um país pra ficar. Rejeitou um convite para se juntar com alta patente ao novo exército polonês. Antes, havia cursado um ano de engenharia em Vienna.
Numa das histórias da guerra, contou à minha mãe que teve que decidir se pedia ajuda ou não a soldados próximos pois afundava em areia movediça. Resolveu gritar por socorro, pensando que de qualquer modo seria melhor morrer com uma bala na cabeça do que asfixiado. Talvez outro se paralizasse, ou decidisse pelo auxílio tarde demais. Os soldados eram de seu “time” e ele foi salvo, ainda que marcado pelo episódio. Além do cálculo acertado, a história também revela uma certa confiança no outro, que muitas vezes perdemos desnecessariamente…
Comprou uma assinatura vitalícia do jornal Folha de S. Paulo, que Frias não cumpriu. Lia os jornais, em casa ou dentro da sinagoga, de acordo ainda com minha mãe. Que inteligência seria essa que lhe faltava? Pois senso de humor também tinha, talvez um pouco chulo, entremeados por mijos e bostas, pelo que podemos observar do humor dos filhos, mas sei que fazia rir. Saiu do Sport Club Germania quando eles estenderam a suástica, e foi dos primeiros sócios da Hebraica.
“Era um homem bonito, inspirava confiança. Era grande, tinha presença. E depois estava estabelecido, já era mais velho. Quatorze anos. E então me casei”, me contava a minha avó. “Não era uma inteligência, mas era um homem sólido, isso sim.” Vejam vocês: esse homem importava geradores elétricos alemães e os instalava nas fazendas do interior de São Paulo. A mim não me parece a tarefa mais banal do planeta. Hoje, na obra, conversando com o engenheiro eletricista, que tentava me explicar como a luz do banheiro do vizinho de baixo havia sido cortada por conta da reforma no meu, entendi que era melhor ficar olhando seus olhos azuis e seus gestos precisos para usar num próximo conto do que acompanhar o emaranhado de conduítes que ele me oferecia.
Em termos financeiros, a falta de inteligência lhe deu uma bela casa na Almirante Pereira Guimarães, além da casa de campo, que vendidas garantiram um teto para os filhos recém-casados e a aposentadoria da minha avó.
Parece que me adorava, mas tenho apenas uma única memória dele. Me pergunto se me adoraria se pudesse ter mesmo me conhecido. Me pergunto se eu não seria diferente se o tivesse conhecido.
Não levem minha família a mal, nunca fomos intelectuais empedernidos; muito ao contrário. Minha avó não podia ouvir falar de Clarice Lispector que lhe dava arrepios, a verborragia toda. Para meu pai, era Celso Lafer o alvo de seu anti-intelectualismo. E minha mãe nem se dava ao trabalho de criticar ninguém, tão pé-no-chão.
No que me diz respeito, a prova maior de sua inteligência, além de ter vindo para o Brasil refazer a vida depois da guerra, que é óbvia demais para comentar, era o modo como, diziam, tratava a minha avó.
Era o provedor. Se ela queria ir à Europa, ia. Se ela queria duas empregadas, tinha. Se queria se envolver com a Ofidas, tudo bem. Sarcástico raras vezes, pelo que pude captar das descrições familiares. “Carlota, você é mesmo uma Pretzel!”, parece que dizia, quando minha avó se revela muito ela mesma. Mas, tenho a impressão, não argumentava.
Agora, quando minha avó estava realmente impossível, sua crítica implacável – e, pior, verdadeira – atacando tudo e todos, sua fala ininterrupta apesar dos apelos gerais, meu avô respirava fundo e soltava num único berro: “Agora basta, Carlota!!!” E minha avó se calava.
E então fica o mistério: que inteligência era essa, que ele tinha ou não?