Escrevi esse texto no estacionamente uns meses atrás. Procurando outro, que acho que não escrevi, resolvi postar esse. O que a gente faz com um texto que só imaginou e nunca escreveu?
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A casa estava em reboliço. A cozinha a todo vapor. Vinham amigos e parentes. Primos que há muito não se viam diziam uns para os outros: “Puxa, você está a cara do Jaime!” Vinham até cunhadas. Um psicanalista veio dar a extrema-unção.
Num oásis de silêncio, chorei baixinho à mesa. Minha mãe perguntou inexpressiva: “Popinha, por que você está chorando? Eu preciso saber.” Disse que era porque agora estava todo mundo lá, uma confusão. Depois ficaria um vazio terrível. Eu mal tinha me formado.
Assim foram as semanas. Meu irmão decidiu ficar, a conselho dos médicos. Então minha mãe mandou fazer dois frangos. Minha avó recebia as visitas. Eu e meu irmão nos fechamos no quarto de minha mãe, jogando memória no chão, incomodados quando nos interrompiam.
Veio uma prima oferecer levar minha mãe a um centro espírita. Depois minha mãe me perguntou: não vão me levar a lugar nenhum, né? Aí veio sua mãe, com quem me pareço quando estou brava e feia, dizer que ela ficaria boa. “Estou bem,” respondeu minha mãe, “tive a vida que quis, os filhos que quis.” E se mexeu um pouco na cama, desconfortável.
Veio Madame Raymonde e minha avó ordenou que minha mãe se apresentasse melhor diante das visitas. “Essa aí nunca gostou de mim”, minha mãe concluiu, erroneamente, a respeito de minha avó.
Eu estava certa: depois do enterro, um último almoço de frango frito e um vazio tenebroso. Houve um dia em que simplesmente me joguei no chão, chorando convulsivamente. Uma dor infernal.
As aulas do mestrado me distraiam precariamente. Mestrado. Sem o desejo de mudar o mundo da faculdade, sem a aventura intelectual do doutorado. Apenas um mestrado, um limbo, uma distração.
Pegava o carro e parava uma ou duas vezes no caminho até a Vila Madalena, para chorar e rabiscar frases. Aulas tolas. Orientadora sem orientação. Meu irmão nos Estados Unidos.
Telefonei a uma amiga de minha mãe e pedi para ir com eles para Campos de Jordão no feriado. Ela disse não. Pedi a uma amiga que viesse buscar os remédios de minha mãe e doasse às Clínicas. Ela não veio. Uma tia querida do Rio veio a São Paulo contando histórias de assalto, enquanto outra reclamava de um braço trincado.
Eu não entendia bem por que o mundo não se esforçava para me consolar. Quando já ia me acostumando, uma amiga ligou e me convidou para jantar. Depois desmarcou na última hora, pois ligaram amigos indo comer na Casa das Massas e fazia tempo que ela não ia lá.
Eu uivava de dor.
Talvez fosse um vazio tão terrível que eu não visse ninguém. Havia um colega apaixonado, a quem eu provocava esfregando a perna no meio das aulas e dizendo bobagens: “Sabia que sou ruiva de verdade?” Mas não sei se o via como homem, ou mesmo como gente.
Amigas da minha mãe me convidavam para a Páscoa. Meu melhor amigo sumiu, envolto, depois eu soube, num luto mais sutil que o meu. Seu pai, comunista, havia apoiado Paulo Maluf para prefeito de nossa cidade. Os outros amigos eram muito jovens para entender o que me havia acontecido.
Eu flutuava numa cidade anônima, me surpreendendo com a quantidade de gente viva que andava por ela, de lá pra cá.
No meu pai reencontrei um amigo. O que me ensinou a usar giz deitado para desenhar letras. Não é que tivesse me apoiado exatamente. Estava atordoado. Como as pessoas que amam de verdade, não conseguia – e acho que não conseguiu até o fim da vida – imaginar a vida sem a Rosa.
Talvez isso surpreenda alguns, mas algumas vezes o vi chorando a ausência da minha mãe como um bebê a quem se tira um brinquedo repentinamente. Atônito. Me contou de um concurso de contos, me inscrevi e ganhei.
Nem tudo era ruim. Quando foi a vez de roubarem meu carro, os colegas do mestrado fizeram um círculo e riram de meu relato cômico, chegavam outros e eu tinha que repetir. O prazer de fazer rir. Colegas que substituíam minha melhor platéia.
Ficou a minha avó, ficou a Terezinha.
Saí daquela experiência uma pessoa pior. Mais desconfiada do mundo e mais fria também. Depois veio Nova York, onde não há tempo para luto. Só a luta, dos imigrantes, dos artistas, dos que buscam extrair algo daquela cidade espetacular. Me diverti muito, tive uma segunda adolescência que compensou a primeira interrompida. Mas as coisas não se revertem.
Ou se revertem. Quando jogo minhas sobrinhas no chão de tanto rir, fico um pouco melhor. Alguma humanidade perdida volta em suas risadas, e aí não importa se o humor é chulo ou sofisticado, auto-depreciativo ou sádico. A risada é ela mesma algo que nos torna gente. Quando, crianças, as tirei do armário ou de debaixo do sofá, onde se escondiam de mal com o mundo, também melhorei como gente. Disse e ainda digo que o mundo não é tão mau assim, que vale a pena sair da toca, mesmo quando não acredito totalmente.