Aqui nesse blog já fiz algumas homenagens. Ao querido Regis Andrade, do Cedec, recentemente. A um antigo professor da New School, Arthur Vidich. Talvez já tenha falado do tio Reinaldo, professor de matemática do Pequeno Príncipe, mas acima de tudo um grande educador, que preservou a sabedoria evitando ler Piaget, Vigotski e talvez até Dewey que não faz tão mal.
Um dia fui até a mesa dele e falei: “Você sabe que eu sei que 10 vezes 10 não é 106; é minha letra que é ruim. Por que me dar 9,9 na tabuada?” Ele: “Claro que você sabe. Mas eu vou avaliar o que você fez.” Voltei a minha carteira sem argumentar. A coisa era clara. Vou ser avaliada pelo que fizer. Assim eram as coisas.
Falo do tio Reinaldo pois encontrei – ou fui encontrada – por um colega seu, o Omar, de história, num congresso há algumas semanas. Ele ia falando, perguntando de mim, e eu fui ficando desacorçoada, pois só via na minha frente o tio Reinaldo, mesmo sabendo que ele havia falecido uns 10 anos atrás. “Me diga quem você é, por favor!”, eu disse. E aí ele contou que era o Omar. Estranha a memória da gente, colocando as pessoas junto.
Mas esses eram, cada um ao seu modo, professores bons, que abriram horizontes, nos mostraram coisas e nos questionaram. Há também os professores pedra. Aqueles que colocam na frente da gente obstáculos tão grandes que levamos anos – décadas – para superar. Não sei examente por que fazem isso, nem que habilidades desenvolvem para conseguir isso. Nem sei se sabem, ou se nos botam pedrinhas, pedrões no caminho assim destraìdamente.
Espero não ser uma professora pedra.
No Bandeirantes eu tive uma professora pedra, acho que se chamava Clarisse. Ou não. Lembro do rosto dela, de sua expressão intensa e patética. Ela dava aulas de sociologia, numa escola profundamente técnica, e por isso se achava a tal. Achava que podia nos contar verdades sobre o mundo.
O pior é que as colegas a viam como se ela contasse verdades sobre o mundo, verdades que elas não ouviam em casa nem nas aulas de biologia nem nos livros. Clarisse fazia afirmações seguidas de silêncios muito expressivos, em que seu rosto assentia ao que ela mesma havia acabado de afirmar.
Como por exemplo, que a Segunda Guerra foi contada pelos vitoriosos, e que poucos conheciam as versões dos japoneses, como ela, ou de alemães, como seu marido. Era de exasperar. Eu detestava tudo nela. O modo de andar confiante com um sorriso abestalhado na cara, o modo de dar aulas, criando um pequeno culto, e principalmente a matéria, que era uma enchurrada relativista sem poesia nem razão.
Seu ídolo era um tal de Edgar Morin, que por tabela passei a odiar também.
Hoje, 28 anos depois, fui ver o Edgar Morin no SESC Pompéia, valeu Danilo. Um francês pequeninho e vivaz, falando de coisas do cotidiano e filosofando sobre a vida. Me deu vontade de realmente entender o francês, pois parecia muito bonito o que ele falava. Parecia doce e verdadeiro. Falava de seus diários, dos cadernos onde foi registrando a vida, em seus momentos banais e intensos. Uma luta contra o tempo, o diário. Falava na necessidade de nos conhecermos e de fazermos isso através da escrita. Nos vermos através do outro, parece. Misturava, como Simmel e outros tantos, a alta filosofia e o prosaico. Gostei.
Demorou, mas gostei. O odiado Edgar Morin, da cultura de massas da Clarisse, era um judeu bem simpático, afinal. Quem sabe agora posso ler seus livros?
O outro professor na verdade era pai de colegas da escola, o David. E não me colocou bem uma pedra no caminho, quer dizer, era uma pedra alta mas tinha jeito de escalar. Um dia, mais ou menos quando eu ainda aprendia a tabuada, ele me olhou e disse: “Você vai ser médica. Drª. Heloisa.” E mostrou com um gesto a placa na entrada do meu consultório. “Não. Vai ser escritora. Clarice Lispector.”
Não sei o que dá na telha de um adulto falar algo assim tão forte para um criança. Mas acreditem que eu entendi exatamente o que ele quis dizer. Fiquei olhando aquele homem gordo, talvez mais velho que meus pais, de algum modo mais remoto que eles, e me assustei.
Só fui ler Clarice muito tempo depois. Eu tinha 17 anos, estava na faculdade, e a Karla me deu um livro dela. Obrigada, Karla. Cada texto da Clarice eu sentia que estava só relendo. De algum modo, o David tinha me dito o que tinha lá, naqueles livros. Demorei para ler, é verdade. Mas talvez tenha lido melhor.