Carminha e Eu: pensando sobre Avenida Brasil e o Melodrama

  • Renovação

Se dependesse de mim na segunda-feira Avenida Brasil seria reprisada desde o primeiro capítulo, com a Ritinha ainda criança tendo que lidar com a madrasta Carminha. Sem cortes, sem edições, mais 6 meses de dramas e revelações que agora apreciaríamos sem ansiedade, já sabendo, mais ou menos como em nossas vidas, que tudo no final acaba bem.

Avenida Brasil propôs uma grande renovação na novela brasileira – na “teledramaturgia”, como dizia meu pai, irônicamente, como se novela fosse arte – e se tiram crases e acentos eu também me sinto no direito de colocá-los de volta. A renovação não esteve nos diálogos sobrepostos nem na câmara ágil, pois convenhamos que às 9 da noite são caras cansadas na frente da TV e não milhões de críticos de cinema da Folha.

Os diálogos ajudaram as boas interpretações, e as câmaras as revelaram, claro. Mas isso não é renovar. Isso é apenas “dar um tapa” num modelo de produção que vinha sem atualização há muito tempo. A verdadeira mudança que vi em Avenida Brasil foi o resgate do melodrama mais escrachado.

Quem estuda a história das novelas sabe que ela vem dos folhetins franceses do século XIX, atualizada pelas soap operas de rádio americanas. Lá pelos anos 50 nós já ouvíamos e víamos essas novelas, mas quem as incentivou foi mesmo Fidel Castro, cuja revolução trouxe para cá uma grande noveleira chamada Glória Magadan.

Depois dela, a vontade de mostrar o Brasil nas telas da TV e de ensinar o povo a preservar o meio ambiente, parar de bater em mulher com raquete de tênis e doar órgãos depois de morto. É bom ver o Brasil na TV. É bom ver-se a si mesmo na ficção. Me lembro de uma cena da  Alessandra Negrini sentada no sofá, com as contas espalhadas no chão, a cabeça apoiada nas mãos, pensando: “O que eu faço agora?” Era uma época em que eu estava sem dinheiro e fiquei contente em poder me preocupar mais com a personagem do Gilberto Braga do que comigo.

Essa novela era tão boa que a cada cena eu pensava: “Gente, esse cara sou eu!” O ourives tímido, a gêmea ingênua, o empresário arrogante, a puta que não queria que as pessoas a tratassem como uma puta, o herdeiro ressentido, eram todos eu. E quem sou eu pra dizer que não é bom a novela mandar as pessoas pararem de espancar mulher com raquete? Fundamental. A novela cumpre um papel social.

  • Melodrama

Mas essa novela mandou tudo pro espaço e renovou ao buscar o que há de mais essencial no folhetim, que é o melodrama. Para minha tese de doutorado tive que ler um montão de textos sobre o assunto, e em especial o livro “The melodramatic imagination”, de um professor de Yale chamado Peter Brooks. O melodrama, diz minha memória do livro, surge na era moderna confusa, contraditória e com valores em mutação como mecanismo para pensarmos eticamente. Èticamente. Os dramas são acentuados, colocados em preto e branco, e somos instados e nos posicionar a respeito de decisões de vida e morte. O que fazer?

Não há mais tradições nem pastores nos dizendo se devemos ir para cá ou para lá, casar com esse ou aquele, falar ou calar. (Os pastores de hoje me parecem mais escritores de novela no púlpito que propriamente pastores no sentido comunitário do termo, pois podemos trocá-los como quem troca de canal, criticá-los como quem critica o final da novela, perdoá-los como quem perdoa um ator em má fase.)

No melodrama, os vilões têm as cores mais carregadas e a trama simplificada como recurso para revelar o drama. Drama no sentido de dilema, de decisão. Mas o fundamental é esse drama: as decisões da vida para as quais a tradição e a religião não têm mais respostas prontas. Saber para onde ir passa a ser tarefa individual, com tudo de bom que isso traz e tudo de pesado e difícil também.

Nesse sentido Avenida Brasil resgatou a essência do folhetim moderno, nós que estávamos cansados de educação moral e cívica às 9 da noite. Os personagens mal tinham vida interior. Não havia os monólogos brilhantes de Toni Ramos em Paraíso Tropical (não sei por que a novela não se chamou Copacabana), nem as reflexões psicanalíticas das Helenas de Manoel Carlos. Eles estavam sempre agindo, e sempre agindo de um jeito um pouco torto, como se houvesse algum outro caminho a seguir.

Max poderia ter abandonado Carminha. Carminha poderia ter virado a esposa afetuosa que ela fingia ser. Nilo poderia ter contado que Santiago não era santo. Mãe Lucinda poderia ter revelado a todos seus pecados. Nina poderia ter casado com o namorado argentino. Aliás, ele está livre agora? Até a pequena Ágata (procurei no Google “irmã de jorginho”) poderia ter encarado o fato de ter uma mãe fria e deixar de buscar sua aprovação. Sem grandes reflexões – teve um dia em que ela falou para a Nina que a mãe não a amava – a menina gordinha que nada nos ensinou sobre reeducação alimentar nos colocava a cada dia uma pergunta: “até que ponto?”

Até que ponto vai o amor, a necessidade do amor, a vontade de ser o que os outros querem, a inteligência de ver quem nos quer? Culpada, carente, ela busca na possível meio-irmã… Enfim, vocês entenderam, não vou analisar a novela.

(Ágata, aliás, além de gordinha uma menina estudiosa e inteligente, foi a rara representante desse novo Brasil que faz faculdade e tem ambições profissionais, como notou minha cunhada. Nisso, a novela não inovou mesmo. Saudades do Toni Ramos, empresário de hotelaria que de fato trabalhava, empregava e vivia o hotel em torno do qual os personagens circulavam. Em Avenida Brasil as pessoas já ganharam a vida, estão no lixão ou aguardam o bilhete de loteria do esporte, mais ou menos como Sergio Buarque já tinha nos jogado na cara 80 anos atrás. Nina só ganhou uma profissão por ter morado em Buenos Aires, na Europa…)

  • Carminha

Genial a revelação do Santiago, o mau-caráter que deu o ponta-pé na grande trama, seduzindo a maternal Lucinda. Também nos botou para pensar quem são os nossos Santiagos, os nossos bodes expiatórios passivos e passados, mancos e consertando bonecas, enquanto nós por livre espontânea vontade a ele nos prendemos.

Uma pena enorme do Max, que poderia ter dado a volta por cima, ainda jovem e bonito. Não sei por que ele não se regenerou, pediu um empréstimo para o Tufão e abriu com a Carminha uma empresa de reciclagem de lixo, que ganharia autonomia financeira a partir de generosos contratos com a prefeitura. Por que o Max não fez análise, descobriu que seu amor por Nina era na verdade um desejo de reconstrução que poderia ser realizado com outra mulher?

Isso tudo nos últimos dias, quando a trama toda se revelou. Mas também o Tufão, dividido o tempo todo entre a vontade de manter a família unida e a de chutar o balde. Queríamos que ele chutasse o balde. Mas não que seduzisse a Nina, sua possível filha adotiva. Queríamos, mais que tudo, saber quando devemos nós chutar o balde, quando estamos definhando por causa de uns sanguessugas e quando estamos nos dedicando a nossos grandes amores.

Não sabemos.

E então veio o verdadeiro drama, de Carminha. Pois quem é que sabe se uma filha deve delatar o próprio pai? Se a questão nos fosse apresentada logo no começo, não teria graça, pois nós sabemos a resposta: dessa vez o Juca de Oliveira foi longe demais. Mas o drama era o da menina de 5 anos, presa à violência que testemunhou. Sua homenagem à mãe era o ódio à rival, Lucinda, que causou tudo. (Ai, quanta análise, é a saudade da novela boa.)

Acompanhamos o drama da Rita que era uma próxi do verdadeiro drama. A Nina sim queria denunciar a Carminha, fazê-la pagar pelo que provocou em sua vida. Será que vale a pena? Justiça, vingança, o que for, vale a pena? Isso é o mais puro melodrama, pessoal, isso é a choradeira, o heroísmo, o pânico, o destempero, a decisão. Isso não é novidade. É coragem de fazer novela.

  • E eu

Quero falar mais de Carminha, da verdadeira heroína dessa história torta. Que viu o pai matar a mãe e depois colocar a culpa na amante – o Santiago é o pior vilão da teledramaturgia nacional. O melodrama – ele é nossa realidade ampliada e distorcida, fantasmagórica – nos permite ver nossos pequenos dramas melhor. Quero rir de meus dramas com a risada sardônica de Nilo. Quero entender como uma pessoa fica parada em um momento do tempo, refém mesmo, acumulando mágoas ao invés de chutar o balde e abrir uma pousada em Trancoso. Nada novo nisso. Carminha foi usada e abusada. Mas nossa realidade é sempre mais leve e sutil que o melodrama. E cada um tem a sua, se eu falar de mim vou te roubar tempo para pensar em você. “Você é vingativa, Adriana?”, perguntaram para a atriz. “Espero que não”, ela respondeu, com a cara de quem foi pega com a mão na botija.

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