A falta que o Rabino Sobel faz

Recebi por email esse cartaz, e senti um certo desconforto. Não sou nenhuma fã de Ahmadinejad, e não compartilho o carinho que o Itamaraty tem por ele e ditadores em geral. Mas senti um desconforto, como se o cartaz nem me endereçasse nem falasse por mim. Reprimi meu instinto crítico mais imediato, de questionar o texto e o tom da campanha em emails ácidos, e nas 6 horas de viagem de Marília a São Paulo, essa minha “perda de tempo” semanal, onde escrevo meus melhores contos por não ter papel nem caneta à mão, deixei a mente voar.

Ela pousou no Rabino Henry Sobel da Congregação Israelita Paulista e na questão tão delicada da liderança judaica.

Delicada pois para haver liderança é preciso haver liderados e nós judeus modernos somos essa coisa amorfa (ou fluida, para ser mais simpático), esse grupo diverso, que se identifica precariamente com alguma coisa que não sabe definir. Que tem “orgulho de ser judeu” e orgulho também de ter uns passaportes na gaveta onde não está escrito “judeu”. Milionários e gente de poucos meios, como alguns jovens que conheci nas Macabíadas. Religiosos e ateus convictos. Judeus orgulhos e no armário. Gays e cafajestes no melhor estilo brasileiro. Cientistas premiados e boçais completos, desses que compram só as capas dos livros para combinar com a biblioteca. Petistas e malufistas – quer dizer, aí não há contradição!

Sobre Israel, então, nem se fala. Há os dementes que acham que devemos defender o cerco a Gaza! O que posso dizer mais? Gaza! Gaza pode ser explicado militar e historicamente, mas não pode ser defendido. Fomos nós que inventamos o olho por olho, dente por dente, não? Uma inovação, pois antes disso as punições se estendiam para as famílias, os povos dos criminosos: você roubou meu carneiro então vou matar sua filha. E há também os eternos sonhadores do Paz Agora. Somos todos judeus. Então a representação política deste grupo é muito difícil, senão impossível. Nem somos um grupo diverso porém autônomo – cidadãos de um Estado – nem somos um grupo de interesse específico – o empresariado paulista.

O Rabino Sobel representava formalmente apenas uma organização judaica local. Só isso. Mas sua influência ia muito além dessa organização. Me lembro que uma vez tentaram destituí-lo e São Paulo toda, judeus e não-judeus, foram contra. Pois ele era então patrimônio da cidade. De onde vinha essa influência? Acho que como bom judeu ele manteve sua origem sem desrespeitar a cultura local. Quando falava, quando assumia seu papel público, era um americano, com fé no debate aberto e na força dos argumentos e confiança no interlocutor. Mas, talvez até por ser “de fora”, sempre teve um respeito muito grande pelo tal “jeitinho brasileiro”, pelo modo amoroso, cauteloso, com que lidamos com nossas desavenças.

Sobel trazia em seus discursos um mix de idéias, que também o qualificam para o título de “bom judeu” que estou usando aqui. Havia algo político. Havia algo sentimental. Havia história. Havia humanidade. Num recente Yom Haatzmaut, na CIP, eu o encontrei depois de uma série de discusos anódinos proferidos por líderes atuais e convidados. “Rabino, senti falta de seu discurso, de alguém que pudesse dar sentido a tudo o que acontece hoje em Israel.” Ele, também de modo muito judaico, respondeu: “Eu também senti falta!” Mesmo ele, Sobel, precisava naquele momento de um bom discurso do Sobel para se organizar mentalmente!

Pra mim, claro, o que mais marcou foi o discurso que ele fez no velório da minha mãe. Ela era fã dele e então demos um jeito de trazê-lo para o Einstein. Já tinham se passado dois dias desde que minha mãe havia perdido a consciência, então de certa forma eu estava mais anestesiada que abalada no dia do enterro. Pude olhá-lo, ao redor de um monte de gente, como se não fosse da minha perda que ele falava. E fiquei impressionada com o quanto ele trazia a vida da minha mãe para aquelas pessoas que tinham acabado de perdê-la. Sem conhecê-la; apenas com uma ou duas palavras dos filhos e sentindo a energia dos tantos presentes.

Podia fazer isso por uma habilidade natural, por conseguir traduzir em palavras isso tudo: emoção, vida, história, povo, ética, ação. Em uma palavra, valores.

Valores judaicos, valores humanos.

Hoje, ao que parece, judaísmo virou usar aquelas saias maria-mijona e jogar búzios. Talvez eu esteja sendo acometida de um saudosismo agudo dos anos 80, e seja melhor virar a página e aceitar os fatos como eles são. A ignorância ultra-religiosa e o judaísmo Madonna venceram. No plano político, o nacionalismo mais vulgar tomou conta, sem os entraves éticos que uma forte espiritualidade exigia. Mas não vou fazer isso. Acredito, ao contrário, que seja necessário resgatar o judaísmo humanista, helenista, digamos, para usar um termo anacrônico, e denunciar tanto o espírito macabeu quanto a feitiçaria.

Não sei exatamente quem vai fazer isso, ou como. Tenho algumas propostas, claro, mas não convicção. Não vejo um novo Sobel surgindo. Olho os rabinos de hoje com tanta desconfiança! Não é desconfiança no sentido de que vão afanar umas gravatas, não é isso. Quem conviveu com o Sobel sabe que ele não é um santo. Um dia me tascou um beijo na boca assim do nada, nem nenhum contexto. É desconfiança de que estejam à altura de liderar, algo mais profundo. Desconfiança de que tenham compreendido de que se trata a história do povo judeu.

E de que se trata, a história do povo judeu? Não há jeito, o medo da aniquilação e o orgulho étnico sempre estarão conosco. Estão nos mitos judaicos, na história do povo e na psique de cada um de nós. O judeu mais cínico sorri quando são divulgados os nomes dos premiados com o Nobel. Ao crítico mais feroz da “indústria do holocausto” aparecem nazistas uniformizados em pesadelos. Não tem jeito. Mas nem um nem outro pode ser base da ética judaica. Nem um nem outro pode pautar nossa visão de mundo, nossos desejos para o futuro do povo judeu e da humanidade.

Enfim, não sei como fechar esse texto. Talvez com uma pergunta. Quem, ou o que (que instituição, que prática) pode hoje tomar o lugar do Rabino Henry Sobel da CIP? Quem pode resgatar a experiência judaica, coletiva e pessoal, para dar sentido ao mundo de hoje, com seus desafios globais? Quem pode ao mesmo tempo reafirmar nosso compromisso grupal e ir além dele, forjando alianças com outros grupos com valores afins? Quem pode compreender a cultura brasileira, em toda a sua complexidade e delicadeza, e criar laços (e não levantar muros) entre ela e nossas comunidades ao redor do planeta, inclusive em Israel?

É isso aí, queridos irmaos.

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5 respostas em “A falta que o Rabino Sobel faz

  1. O artigo acima teve muitas visitas depois que foi citado por um rabino da Bahia; coisas da internet. Então acho que seria bom dizer que tenho respeito pelas pessoas que se envolvem em questões comunitárias, o que não deve ser bolinho. O que os judeus fizeram individualmente no Brasil é impressionante – uma comunidade tão pequena e tão presente nas artes, nos negócios, na ciência, na educação e nas profissões liberais. Mas os líderes comunitários, que tocam o dia-a-dia das instituições que frequentamos, também tem um papel nisso tudo e, numa comunidade tão diversa, não dá pra agradar todo mundo. Aquela campanha estritente contra o Ahmadinejad, que pareceu ter saído de uma aula mal preparada de escola de comunicação, não faz jus ao esforço dos líderes comunitários ao longo do tempo para construir escolas e piscinas, sinagogas e centros culturais, hospitais e organizações sionistas. No mais, é botar a mão na massa.

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