Talvez já tenha mencionado que quero escrever um ensaio entitulado “A Geniza de Marília”, sobre o curso sobre memória que estou dando esse semestre, muito rico. Mas hoje vou falar sobre uma pequena cena novaiorquina, nessa que foi minha viagem mais espetacular aos Estados Unidos. Espetacular pois pude deixar de lado os sonhos e os desapontamentos e simplesmente curtir esse país estrondoso.
Curtir o trânsito infernal de Houston para Galveston, que é mais infernal do que o de São Paulo para Juqueí pois os carros são imensos e no final você não chega numa praia bonita. Curtir uma mega feira de educação internacional, que poderia ser uma mega feira de produtos para a indústrial petrolífera ou uma mega feira de equipamentos hospitalares ou uma mega convenção sobre fadas, e estaríamos lá as milhares de pessoas andando de um lugar para o outro, fazendo negócios e trocando cartões.
Curtir a minha cidada favorita, favorita entre as favoritas pois lá sempre há alguém com saudade de sua cidade favorita. “Vá na segunda para Nova York”, meu irmão disse. “Vou no domingo, pois quero acordar numa cidade que nunca dorme.” Curtir minhas sobrinhas, que estão ficando adolescentes e pode ser que ser pai de filho adolescente seja um porre, mas ser tia é uma coisa realmente espetacular, é um tesouro dar risada na rua com elas, e dizer “O que aquela mulher com cara de bruxa estava fazendo sentada na frente da casa?” e rir e rir e rir pois o mundo para o adolescente é absurdo demais para ser levado à sério.
E ficar em Nova York na casa dos primos e nem querer sair, só querer bater papo de costas para o Empire State Building e deitar com as persianas levantadas para adormecer dizendo boa noite ao prédio iluminado de azul e vermelho, que são as cores desse meu segundo país. E depois no último dia sair a esmo pela cidade, pelo Upper West Side onde não há nada, museus, galerias, só gente indo pra cá e pra lá, não há nada turístico, nem pessoas fantasiadas de artista como no East Village, simplesmente gente vivendo.
Eu queria ver gente vivendo numa cidade.
Saí pela cidade sorrindo e os novaiorquinos me sorriram de volta, desarmados.
Andei pela Broadway desde o Lincoln Center e comprei uma roupinhas e fingi que morava lá. Por um dia, eu morava lá. E usei o banheiro do Starbucks e subi pela West End e dei na Ansche Chesed e quis muito entrar como se fosse uma igreja pra rezar um pouco, mas ia ser estranho pedir então apenas vi gente conversando na porta e me imaginei lá dentro, no salão de sábado no grande salão como se fosse um feriado importante. E virei de volta na Broadway e vi um café e pensei em entrar e andei um pouco e voltei e entrei, e ali estava já sentado um senhor que tinha me chamado a atenção na rua, minutos antes, pois era parecido com meu orientador e todos no Upper West Side eram na verdade parecidos com meu orientador.
Sentei e abri meu livro sobre a geniza do Cairo. O homem despudoradamente olhava o que o rapaz do lado lia. Não com o canto do olho. Com o corpo inteiro, ombros, pescoço, olhos, nariz. E depois olhava o que o rapaz do outro lado fazia, do mesmo modo, a mesma insensata curiosidade. E então eu acenei com meu livro e ele apenas perguntou, alto, pois não estávamos tão perto assim: “Sobre o que é?” E eu disse, e ele perguntou se eu já havia lido um outro livro sobre o mesmo assunto, e aí eu o convidei para sentar ao meu lado, e ele hesitou um pouco mas não resistiu. Pois era sobre a geniza do Cairo.
E ele já havia estado lá, e conhecia os nomes da saga da geniza. Os que a descobriram. Os que estão nela retratados. E não ficou assim muito bem impressionado com o Cairo, assim como Schechter não havia ficado no século XIX, mas a geniza era uma coisa incrível, um mundo inteiro trazido de volta.
“O que mais me impressiona,” eu disse, “é que é um mundo moderno. Que são pessoas que pensam como nós, com quem poderíamos sentar e conversar.” Ele concordou e mencionou as extensões das viagens que aquelas pessoas faziam, as rotas comerciais. “A impressão que temos é que antes as pessoas ficavam num lugar e pronto, mas não é assim,” ele disse. Sim, não é assim. Circulamos, circulávamos e circularemos. De tanto em tanto tempo, deixaremos uma geniza, um lugar que é meio depósito de lixo, meio cofre sagrado, com nossas memórias banais e heróicas.
E, de tanto em tanto tempo, nos encontraremos para falar dela, com estranhos completos, que atiçamos, alegres, acenando com um livro na mão. E assim terminou minha visita a Nova York, trocando cartões com um psicanalista do Upper West Side, e depois me perguntam por que não invento histórias, pra quê, se é só esticar o pescoço e olhar atentamente o que temos em volta, que não é pouco.