Adorei a leitura do Peres sobre Natal. Todo mundo, mesmo os adultos, tem aquela coisa que espera receber no Natal. Meu presente foi ter ido no lançamento coletivo dos livros do pessoal dos Estudos Judaicos, na semana passada. Revi a Berta, que respeito muito, o Moacir, que falou do Kaniuk, por quem sou apaixonada, o Saul e a Nancy estavam lá, e também o Luis, que lançou uma tradução de Appelfeld e tinha dois textos numa coletânea.
Ia mandar um email para o Luis, mas por que não dividir com vocês? Um dos artigos é sobre Castel-Bloom. Interessante, me lembrou um pouco o autor daquele conto sobre a menina que vivia da geladeira. Essa geração de israelenses que não aguenta mais “a situação”, como eles se referem ao eterno conflito árabe-israelense, não é contra nem a favor e muito pelo contrário, e tasca a falar de outras coisas.
Não cheguei a ficar com vontade de ler, mas assim como no outro artigo do Luis, uma palavra se destacou no texto. Diz ele: “A obra de Castel-Bloom rompe com a solenidade que cerca toda a literatura de intenções épicas e desconstrói as narrativas formativas ou críticas de um consenso nacional e cultural.” Solenidade. De fato, uma coisa na literatura israelense que chama a atenção é a solenidade. Nesse sentido é o contrário da brasileira, que tem aquela coisa suave, mesmo no texto mais difícil, cômico, o que for. Como se estivesse sempre em suspenso, sei lá, não sou crítica literária, não são definir. “Soft”, eu dizia para as alunas americanas.
Meir Shalev é solene demais, mesmo isso sendo um pleonasmo. Pois solene já é algo que é sério demais. Então você se sente meio enganado, por que essa pompa toda? Não sei se amei Etgar Keret, me pareceu muito anti-solene. Amei o S. Yizhar, “Efraim volta à alfafa”, uma das coisas mais sensacionais que já li. É solene mas o solene está lá de verdade, não é imitação, o personagem não tem escapatória. E é um solene incômodo, como se fosse a camisa-de-força do personagem, e não um objetivo do autor.
(Sabe, eu tenho essa minha teoria literária pessoal, eu acho que o autor deve amar a personagem. Mesmo que ele conte coisas horríveis dela, e que ela realmente não saia bem na fita – ele deve amar a personagem.)
O outro artigo me deu vontade, como a palestra já havia dado, de ler o autor: Appelfeld. Que recontrói o mundo pré-II Guerra do antigo Império Austro-Húngaro. Sou um pouco parte disso: meu avô nasceu numa cidade da Galícia, falava alemão e estudou em Vienna. Ou seja, era parte desse grupo de judeus que estavam se assimilando, indo para as grandes cidades, entrando nas profissões liberais.
Lutou na I Guerra, no fronte oriental. Depois foi convidado para ser parte do novo exército polonês. Segundo contavam meus pais, rejeitou por causa do anti-semitismo que já sentia no exército austro-húngaro, tendo que limpar latrinas quando, por sua boa formação, tinha responsabilidades altas na artilharia. Não sei que patente tinha, mas talvez a cruz de ferro que tenha em casa seja uma pista.
Ele viu o “ovo da serpente”, também segundo as histórias familiares. Em Vienna, segundo meu pai, era parte de um grupo de jovens que defendiam a comunidade judaica dos ataques que esta sofria de outros ex-combatentes, num período de instabilidade política e econômica, cujo desdobramento a gente conhece. No início dos anos 20, viajou pelo mundo, buscando um lugar para se estabelecer. Numa das viagens para a Argentina, provavelmente representando de alguma firma alemã, talvez a AEG, que depois com certeza representou, parou no Rio, viu o carnaval, achou que se brancos e negros dançavam juntos ninguém estaria nem aí para ele ser judeu ou não, e se estabeleceu em São Paulo, onde conheceu minha avó.
Cara, isso é que é sociologia!!! Walter Benjamin, seu contemporâneo, cujos textos a gente dá pros alunos, era um tonto perto do meu avô. Acho que meu próximo curso vai ser: “Sociologia familiar: um exame das escolhas de nossos antepassados que nos permitiram chegar até essa sala de aula.”
Enfim, como no outro artigo, uma palavra deste me chamou a atenção. Diz o Luis sobre Appelfeld, chegado a Israel ainda adolescente, depois de ter passado a guerra escondido nas florestas a Europa Oriental: “Em busca das pistas do mundo em que nasceu, ele passa longas horas nesses cafés onde escuta as conversas dos judeus de língua alema do antigo Império Habsburgo.” E agora o mais importante: “Observa seus gestos e expressões faciaias, suas maneiras à mesa, seus gostos e predileções para, aos poucos, recompor de alguma forma, dentro de si e em seus livros, aquilo que o tempo e a guerra, a distância e os nacionalismos se empenharam em destruir.”
Essa palavra, recompor.
Não é uma palavra que eu uso, mas por isso mesmo me chamou a atenção no texto. Recompor. É isso o que a narrativa, a literatura faz. Recompõe. Nas ciências humanas, ficamos prisioneiros da descrição, ou da mensuração, ou da “crítica”. Quanto muito abrimos um espaço para a hermenêntica. Para a compreensão dos significados da ação. Queremos estruturas, explicações, até previsões e remédios nos damos. Eu pessoalmente procuro dizer o que eu acho que os outros estão dizendo, me refugio nesse espaço dos significados.
Mas e se nossa obrigação for, ao lado das mensurações e outras tarefas mais práticas, também recompor experiências? Juntar – ao invés de segregar – memórias e gestos, nossos e de outros, ontens e hojes? Então queria agradeceu ao Luis – e a todo o pessoal dos estudos judaicos da USP – por essas duas palavrinhas que eu ganhei de Natal!