Já contei essa história em outro lugar, mas acho uma história tão espetacular que vale a pena ser contada novamente. Além disso, história é algo vivo, então nunca será a mesma exata história que conto. Bem, um disclaimer: não é uma história de aventura. É simplesmente uma visita da minha tia avó Adélia, em quem tenho pensado muito ultimamente. E na visita não aconteceu nada – ela apenas contou histórias.
Com minha avó Carlota convivíamos muito. Muito mesmo, às vezes chegava a ser asfixiante. Pedíamos: por favor, pára. Ele respondia: “A verdade dói.” E virava as costas e ia costurar algum botão, vitoriosa. Pois a verdade não dói? Sou neta dessa pessoa, não tenho como fugir. Sou neta da Dona Carlota, que implicava com meus amigos Renata – “vulgarrr” – e Felipe – “o de brinquinhos?”
Os irmãos da Dona Carlota eram também parte das nossas vidas. Frequentávamos a casa do tio Jaime, adorávamos a tia Maria Luísa, mulher dele, que nos paparicava com tudo o que estivesse a seu alcance por sermos filhos da Tota. Conhecíamos bastante a Leonor, que morava em Milano. O Bernardo eu conheci apenas de ouvir falar. E a Adélia. Todos, mesmo o Bernardo, por conta de um interminável inventário, eram parte de nossas vidas. Morriam os advogados – Shostakovich ou Rachmaninov (?), Fritelli, e sobrevivia o inventário com seu terreno que teimava em não existir em Osasco ou algum lugar assim.
Então numa tarde veio a tia Adélia, com seus cabelos todos brancos e bem penteados, seu jeito pausado, seu português de antigamente, muito determinada, contar coisas da família delas. Parecia ter vindo com uma agenda clara, foi contando coisas pausadamente mas sem pausas. Minha avó incomodada: “Agora bem, vamos.” E depois repetia: “Basta Adélia. Rosa – vamos.” Mas mesmo ela não se mexia da cadeira. Estamos as quatro presas à mesa branca, como quem espera uma missa terminar: alguns hipnotizados, outros reflexivos, outros ansiosos. Mas nenhum livre; as histórias iam ser contadas. A própria Adélia, debaixo de tanta razão, tanta ponderação, também ela um pouco possessa.
“Passei um verão todo lendo Platão. Um verão todo. Lembra-se, Carlota?” E depois falando para nós: “A Carlota era a prática. Então papai e mamãe lhe deram o apelido de cabrita, por seu passo forte, fazendo barulho no piso. Tac-tac. Cabrita. Lembra-se, Carlota?” Minha avó recusava-se: “Não me recordo de nada. Agora vamos.” Adélia continuava. “Mas falavam o ídish. Não é Carlota?” Adélia falava para nós. Mas ou pedia a confirmação da minha avó, ou então apenas a espicaçava com suas memórias incômodas. “Como é que falavam, cabrita, em ídish?” Minha avó: “Não sei ídish.” Adélia: “Cabrita. E depois o Bernardo, por ser um pouco esquisito, chamavam-no de bobo. Também em ídish.”
Bernardo é o tio que fez psicanálise por 10 anos, e depois queimou todos os livros de Freud. Então se minhas expectativas quanto à análise foram exageradas, foi culpa minha, pois conheci essa história antes de conhecer minha analista. Internou-se sem que ninguém soubesse para uma operação de varizes, e vocês sabem como eram as cirurgias naquela época… O médico, se não me engano, é que avisou a família. “Mas eram apelidos de brincadeira, Adélia?” “Não, eram apelidos mesmo, bobo, cabrita.” Estávamos chocadas. “Também eu tinha apelido, sonhadora. Pois eu lia muito. Passei um verão lendo Platão. Não foi, Carlota?”
“E o tio Jaime, tinha apelido?” “Não, Jaime era o menor. Era muito amado por todos. Era apenas Jaiminho.” Leonor era a chorona. Fazia sentido. Leonor era a mais bonita, com olhos grandes azuis. Sempre muito arrumada, com jóias, maquiagem. Apaixonada pelo marido, Leopoldo ou Leonardo, se não me engano um judeu polonês que se escondeu na Itália durante a guerra, com a mãe, tendo em algum momento vindo ao Brasil e conhecido a Leonor, com quem voltou à Europa. Lembro da Leonor com um vestido azul royal, deslumbrante em seus 70 anos. O neto dele tem o nome do avô, mora na Inglaterra, encontramos no Facebook.
Apelidos jocosos em ídish. Esquecidos. Cabrita, chorona, bobo. O apelido da Adélia era sonhadora mesmo? Preciso ver os textos antigos. Pode ser. Todos em ídish, apelidos que marcam, numa língua esquecida quase que intencionalmente. Todos saíram desse mundo ídish. Minha avó se casou com o vô Leo, que devia falar ídish em casa mas já estudava em Vienna, falava alemão. Tio Jaime se casou com a tia Maria Luísa que era cristã, qualquer hora falo dela aqui. Tia Leonor se casou com o Francisco, que também era cristão; quer dizer, na USP onde se conheceram acho que a religião era o marxismo, a psicanálise. O Bernardo se casou e se divorciou da psicanálise. A linguagem da Leonor era a moda, as roupas, o cigarro, a memória querida do marido. “Casei-me por amor. Não procurei um judeu. Aconteceu, mas foi por amor.”
“Agora, Carlota,” Adélia disse numa outra ocasião, quando nós é que a visitamos no apartamento da Avenida Angélica, que minhas sobrinhas até conheceram, “agora compreendo a importância das coisas da casa.” E ela repetia, pausadamente, como um ator de teatro, ou um professor, um mesmo um poeta, cada palavra muito escolhida, ressonando na sala de móveis antigos, “uma cópia exata da casa do meu avô”, de acordo com minha mãe.
Agora compreendo a importância das coisas da casa.