O documentário de Herzog sobre a caverna de Chauvet não é bom. Franceses e alemães falando inglês mal, ao invés de serem legendados. Ou, pior, com uma alemã falando inglês por cima, incompreensível. O 3D dá uma impressão artificial, como se estivéssemos jogando um fliperama ruim, enquanto uma filmagem comum nos daria a oprotunidade de imaginar perspectivas, profundidades. E a tese do filme é um sofrimento. As pinturas de Chauvet seriam a alma da Europa. Ai.
Mas o objeto do filme é tão fascinante, pinturas maravilhosas feitas há 30 mil anos, que vale a pena. Passear depois pela internet, o site oficial da caverna. A Wikipedia, as dificuldades com datações. As pinturas (que inspiraram o cartaz da Mostra de Cinema) tem mesmo movimento, graça. 30 mil anos atrás. 5 mil anos atrás inventávamos a escrita, 3 mil anos atrás o alfabeto. Com a escrita, um pouco antes ou depois, a agricultura, as cidades. O que chamamos de civilização. E aqui são 30 mil anos.
E no final do século passado, essa descoberta. Estudos, visitas à caverna, debates. O que eram as pinturas? Ícones religiosos? Obras de arte? “um modo do homem adaptar-se ao ambiente”, diz um cientista no documentário, uma das melhores cenas. E ele começa a descrever o ambiente, os animais, o frio, e o homem no meio disso, tentando adaptar-se. Dar sentido. Enfim, uma cultura avançada, simbólica, é a mensagem.
Será? Achei esse texto fascinante na internet, de Nicolas Humphrey. Ele coloca a tese do homem de 30 mil anos simbolicamente hábil de ponta-cabeça. Diz que aqueles homens eram semelhantes a uma menina autista, que desenha bem exatamente PORQUE lhe falta a capacidade simbólica, da linguagem. Desenhos literais, por isso com tantos detalhes, com perspectiva e movimento. Em crianças com desenvolvimento regular, os desenhos são esquemáticos; apenas os gênios da pintura conseguem desenhar super bem. A maior parte de nós desenha casinhas e menininhas que são quase que palavras rabiscadas.
Mas fiquei pensando nos cavalos maravilhosos de Chauvet, e me imaginei dentro daquelas cavernas, numa era de poucas palavras. Me imaginei vendo os cavalos um sobreposto ao outro, e pensei que talvez os cavalos fossem não apenas um atestado de limitação simbólica, mas um exercício para superá-la. Imaginei uma criança vendo aqueles cavalos e outros animais, e quem sabe dando um nome a essa categoria de seres desenhados, cavalo.
Sabe, como as crianças fazem às vezes, e nós a inundamos com outras palavras até que elas se esqueçam das que criaram?
Imaginei essa criança num mundo pobre em linguagem, quando não havia muito com o que inundá-la. E aí as palavras ficariam no lugar dos desenhos; mas sem os desenhos o que haveria?
Então a alma da Europa eu não sei onde está; provavelmente no Euro, com cara de quem bateu o dedo no pé da mesa. Mas talvez haja mesmo naquelas cavernas, nas paredes cuidadosamente preparadas para a pintura, um ponto de virada. Um esforço brutal, que talvez tenha dado certo ali, talvez em outro lugar, de criar conceitos, palavras, de exercitar algo em nossos corpos que andando entre as mãos, os olhos e a mente.
Não sei. Talvez o pessoal de Chauvet tenha feito cavalos tão belíssimos que pararam por lá. Talvez outros povos, mais toscos, tenham inventado as línguas.