Fiquei nesse fim-de-semana em Marília, e acho que a proximidade me fez ver algumas coisas que eu não estava enxergando. Quem acompanha o blog sabe, eu sempre busco ver qual o “nó” do aprendizado, o que o está impedindo. A psicologia analisa isso individualmente; cada um de nós tem seus nós. Mas eu tento ver qual é o nó que aflige a instituição onde estou. Pois esse nó se reproduz socialmente.
Aí eu tento dar uns exercícios em aula que desfazem esse nó, para que o aprendizado flua. Meu melhor exemplo disso é a “feira do Pacaembu”, na Faap. Os alunos de economia me perguntaram que determina os preços, se era o Ibge, que também estima o Pib. E eu percebi que eles não tinham muita idéia do que era o mercado. Pedi que a turma se dividisse em 2 e ganharia um ponto a mais na média quem conseguisse, com uma quantia fixa de dinheiro, comprar mais coisa. Queria que eles vissem o que é o mercado, como funciona, como depende das pessoas, das negociações.
O resultado até hoje me impressiona. Eles respeitaram as regras do jogo, se engajaram no exercício, e não ficaram só na quantidade: trouxeram flores, cascas de coco para fazer enfeites, foi uma festa. Pediram que os dois grupos levassem o ponto a mais, e eu concordei. Bom, o que vi é que eles se orgulharam de ter feito uma coisa do começo ao fim, sem dar ordens a ninguém, ou seja, sem depender de ninguém. O estereótipo do aluno era de privilegiado e mimado, mas no fundo havia ali uma sensação de incapacidade que era camuflada por esse privilégio.
Essa, aliás, é uma das experiências que me faz ter arrepio quando ouço alguém usar o termo “elite” para se referir a algum grupo social no Brasil. Elite quem? Os alunos da Faap?
Enfim, eu fazia mais desses exercícios no passado, depois a gente acaba engrenando nas aulas, matérias. Mas nessa semana me dei conta, por causa da fala de vários alunos, de que também esses alunos da Unesp tem suas inseguranças. Não sei exatamente a causa. Não sei se é o discurso de alguns professores, de que a sociedade é malvada e tudo vai dar errado, que acaba minando a confiança dos alunos e o próprio significado da formação acadêmica. Não sei se é o fato de Marília estar um pouco distante dos centros culturais mais importantes do país. Não sei se é simplesmente porque o curso precisa melhorar, e essa insegurança deriva de aspectos pouco estimulantes do curso.
Mas o fato é que há uma insegurança. Quase um complexo de inferioridade. Eu não vou conseguir. Não está aberto para mim. Isso é para os outros.
Ao lado disso, quem é da Unesp sabe, os alunos de Marília são muito “ativos na greve”. Ocupam a diretoria, colocam cadeiras impedindo a nossa entrada nas salas de aula, essas coisas. Esse ano não teve greve, mas quando tem há até um clima de medo no campus. Ah, esse ano teve uma “paralização”, que é uma greve temporária. Os alunos que vieram na minha sala para ter aula estavam com medo mesmo, tinha gente rondando lá fora, mas por alguma razão aquilo não me afetou, eu mesma não fiquei com medo. De qualquer modo é esquisito.
Então juntei a mais b e pensei o seguinte. De algum modo estamos estimulando essa insegurança. Não falo de humildade, que todo intelectual deve ter, humildade diante dos nossos antepassados, professores, dos livros que lemos. Humildade diante das tarefas que nos propomos e diante também dos alunos que temos. Uma sensação de que há coisas superiores às nossas contribuições, e que devemos humildemente fazer jus a elas. Sem isso ninguém começa um texto, apresenta um espetáculo, dá uma aula.
Não falo disso. Falo da insegurança, do medo de pensar, de um sentimento de derrota que impede que a gente dê um passo. E, se a humildade nos impulsiona a ação, essa insegurança impulsiona a uma rejeição do mundo como ele é. E daí as ocupações, as cadeiras empilhadas na porta da sala de aula que são tão emblemáticas do que estou dizendo que me espanto em não ter percebido antes. Cadeiras na porta da sala de aula. Cadeiras vazias fora da aula. Não-pessoas excluídas, qualquer psicanalista de botequim teria sacado.
Falo, como disse, da instituição. Talvez alguns militantes tenham muito claro o que querem, talvez alguns inseguros já tenham vindo à faculdade assim. Mas falo em comportamentos que ganham sentido estrutural nessa instituição particular, e se perpetuam como pólos complementares. Uma raiva improdutiva, e uma insegurança que também é improdutiva. Que diferentemente da humildade não nos faz mais trabalhadores, não nos faz trabalhar mais para merecer estar ao lado daqueles que nós admiramos ou daqueles em quem nós apostamos nossos sonhos – nossos filhos, alunos, no meu caso minhas sobrinhas a quem também devo satisfações intelectuais.
Não tenho nenhum “exercício” em mente para isso. De modo geral, meus cursos propõe um empoderamento (ai, até eu, Brutus?) intelectual a cada aula, cada exercício, cada trabalho, cada discussão. De vez em quando proponho algo mais forte, ou simplesmente, como na feira, jogo verde para colher maduro. Nessa turma, pedi que fizessem um projeto novo para o campus, e para minha surpresa todos fizeram esse exercício, que era opcional (cada aluno deve fazer 4, a sua escolha). Ou seja, todos tinham o que dizer sobre o espaço universitário, todos queriam sentar e desenhar, propor, imaginar.
Acho, até, que não é questão de exercício. Somos nós, professores, que temos que virar a mesa. Que propor cursos novos e reformular os antigos. Que mostrar a eles que o ensino é importante, que eles são importantes. A bola está conosco, pois se essa polaridade é estimulada no campus, somos nós que o fazemos, por mil mecanismos, a cada dia, a cada reunião, a cada parecer, a cada decisão ou falta dela.
Mas, de que modo a universidade estimula a insegurança?
O discurso “crítico”, por exemplo, para alguns pode mobilizar, dar vontade de mudar o mundo. Mas do jeito que é dado, ele apenas afirma a nulidade da ação, pois se a democracia não funciona, a mídia apenas manipula, as Ongs são apenas o Estado se desincumbindo de suas tarefas, o que você vai fazer? Esse é um fator.