Escrevi esse texto abaixo para uma entrevista para a SuperInteressante, copio abaixo. A matéria era sobre o novo interesse dos jovens pelas coisas simples. Ficou na edição de outubro, com os espíritas na capa. Acho que dá pra download no iPod. Estou escrevendo um texto maior sobre jovens a partir disso.
Jovens
Assim como as crianças têm uma capacidade enorme de criar – já li um estudo que sugere que a própria linguagem humana começou com uma “brincadeira de criança” – os jovens têm esse ímpeto de criar formas sociais novas. Fazem isso a partir, claro, de novidades, mas principalmente se articulando em grupos, escolhendo o que vai pegar e o que não vai, elegendo líderes que possam expressar sentimentos comuns.
Penso que isso é universal; não é de nossa época em particular. Acho que nem é prerrogativa de sociedades modernas, de massa: onde quer que haja um número grande de pessoas convivendo e uma razoável possibilidade de expressão individual, vão surgir as modas, sejam de comportamento, de arte ou de política. Mas claro que na nossa sociedade, não apenas moderna, mas global, onde tudo é pensado em centenas de milhões de seres humanos – eleitores, espectadores, trabalhadores, imigrantes – aqueles desejos que movem a moda são muito mais presentes.
Simmel, o sociólogo berlinense da virada do século XIX para XX, escreveu num ensaio elegantíssimo que a moda depende de dois simples vetores: o desejo de ser como os outros e o desejo de se diferenciar. Alguns hábitos novos atendem ao segundo desejo, mais intenso em algumas pessoas, até que se espalham e passam a atender ao primeiro desejo, fechando o ciclo e pedindo hábitos ainda mais novos. Simmel não está preocupado com o conteúdo da moda: suas idéias se aplicam a roupas, mas também a leituras, a ideais políticos, a qualquer coisa que usamos para nos fazermos distintos de nossos vizinhos – ou idênticos a eles.
Será que os jovens são mais “vítimas” da moda, como aparece nas revistas dirigidas aos pais? Será que devemos fazer campanhas para reduzir a “peer pressure” (pressão do grupo), como os educadores sugerem? São os jovens que fazem a moda; nós é que vamos atrás. É a dinâmica complexa de seus grupos, hoje ainda mais complexa por não se limitar à escola e ao bairro, estendendo-se pelo planeta através de redes de comunicação, que define o que é legal e o que não é legal. Talvez nós devêssemos informar, dar contextos, ajudar os jovens nessa definição de prioridades, pois o nosso conhecimento e experiência não são de se jogar fora, mas a pressão do grupo é para os jovens o que a brincadeira é para as crianças e o que o trabalho é para os adultos; a idéia de combater isso é ridícula.
Com a idade, me referindo a um outro artigo de Simmel, sobre a aventura, algo se transforma. O incessante ir e vir da moda cansa e percebemos as regularidades da vida e de nossa personalidade; a moda parece não nos afetar tanto. Podemos até adotar novas expressões, mas de modo mecânico, por conveniência. No fundo, já descobrimos que o poder destas transformações é limitado. Quando um aluno chega para mim todo entusiasmado com uma leitura de Foucault ou de outro autor, eu sei que esse entusiasmo vai abrir espaço para outro, e para outro ainda, mas ele não sabe e por isso se entrega ao autor e aos modismos intelectuais com mais paixão. Ainda bem!
Tudo isso é bem geral. São “leis” do comportamento humano, que dependem em grande parte do número de pessoas que estão interagindo e do grau de autonomia que elas têm em relação ao grupo. Não custa notar que Simmel, apesar de seu brilhantismo, de seu raciocínio sofisticado e seu olhar clínico para a sociedade, não tem tanta presença no discurso público quanto outros pensadores sem muito o que nos dizer.
Agora, saindo um pouco dessa reflexão geral, e hoje? Você me pergunta dos hipsters, dos jovens que buscam um resgate da natureza e dos antigos ofícios, que buscam expressar em seus hábitos alguns ideais de vida, com a adesão ao vegan, por exemplo. Será que esses jovens são “menos” políticos? Eu não diria isso de forma alguma. Os jovens tunisianos e egípcios tinham um inimigo muito claro a seus ideais de vida, e foram às ruas contra esse inimigo assim como no passado os jovens brasileiros e americanos foram contra o regime militar e a guerra do Vietnã. Hoje, no Brasil ou nos Estados Unidos, temos formas de protestar, de mudar através do voto, do consumo, do convencimento, da arte, enfim, de todas as formas possíveis em uma sociedade democrática. Inclusive indo às ruas, como recentemente na Slut Walk. Então parece que não estamos indo contra nada porque estamos usando mecanismos políticos liberais. Se o serviço militar brasileiro se tornar obrigatório de fato e declararmos guerra ao Azerbaijão, espero que os jovens tomem as ruas e parem tudo! Mas não é isso o que está acontecendo no Brasil hoje.
E, falando em Brasil, o que está acontecendo hoje aqui? O Brasil é realmente o paraíso do sociólogo, pois tudo parece sempre acontecer ao mesmo tempo, tendências opostas se encontrando nesse país grande, enorme. Por um lado, uma massa enorme de gente está entrando no mercado de consumo. Está caindo de boca, poderíamos dizer. Está comprando casa, já comprou colchão, moto, está deixando o feijão com arroz, enfim, tem saído muita coisa nos jornais, livros, pesquisas, não vou me estender. Outro dia na TV vi uma mulher dizendo: “Eu não pude ter nada disso, agora se meus filhos pedem alguma coisa no supermercado, eu dou e fico feliz!” Para esse grupo, o prazer de entrar numa loja e comprar ainda é muito forte, acima de preocupações ambientais ou mesmo de saúde. Estamos todos embriagados com isso: a antiga classe média que afinal está vivendo num país mais igualitário, a nova classe média, principal beneficiária, e a classe trabalhadora que está vendo esperanças para seus filhos. Estamos descuidando dos efeitos disso: desmatamento, novas necessidades energéticas. O governo, ao invés de servir como contrapeso a esse processo, reduzindo o impacto ambiental do crescimento através de incentivos a processos de produção menos agressivos à natureza, parece também estar “comprando no crediário” dos recursos naturais.
A crítica à sociedade de massa está vindo junto com a entrada na sociedade de massa! Os jovens vegans e as cooperativas de apiculturas chegam junto com as motocicletas à prestação e o iogurte industrializado. Não há nada errado nisso, é nosso país, grande, diverso, articulado a tendências globais mas ao mesmo tempo caminhando em seu próprio ritmo. Você me perguntou sobre os aplicativos no iPhone que imitam máquinas de escrever. Eu pensei numa palestra onde se discutia o renascimento dos livros artesanais, com ilustrações à mão, verdadeiros objetos de arte e culto, agora que o livro feito em massa, vendido na Amazon, será substituído pelo livro eletrônico, sem alma. (Para mais, fale com o Vanderley, da AnnaBlume http://www.annablume.com.br/demonionegro/main_demonio.htm, vanderley@annablume.com.br), Também pensei no estilo “Vila Madalena chic”, que de um jeito ou outro eu acabo seguindo. Comer feijoada – que prato mais simples – e depois pagar uma conta bem salgada. Usar bijuterias “simplesinhas” da praça Omaguás. Nós só podemos nos dar esses luxos porque as roupas cotidianas que usamos são ultra baratas, e isso por causa da indústria e do comércio global. Se eu tivesse que trabalhar anos para comprar um jogo de toalhas, como nossas bisavós, eu não poderia financiar os artesãos da Benedito Calixto. Sem mercado globais, por outro lado, as artesãs do Jalapão não estariam vendendo tanto capim dourado pelo mundo afora: “Esses eu não posso botar fio de metal, pois entraria em outra categoria e aí eu teria que pagar impostos no exterior. E lá fora eles não gostam mesmo de nada que não seja natural!”, me disse uma vendedora do produto em Ubatuba.
Ou seja, esse mercado que resgata atividades artesanais é um grito contra a uniformização do consumo, do trabalho, do próprio viver. Mas é um grito possível por causa da abundância material na qual vivemos, o que de modo algum questiona sua mensagem, o seu apelo, o seu poder de reflexão. No que me diz respeito, ser vegan, por exemplo, é algo em si admirável. Não importa que a moça vegan viva numa economia exportadora de carne; não é possível nem desejável ter coerência absoluta em nossas ações. Mas se essa moça ajudar na construção de novos hábitos alimentares, na redução dos pastos e do desmatamento, quem é que vai dizer que ela não é “política”? Eu gosto muito de carne, mas, como disse no início, os jovens criam as modas; quem sabe não mudo também eu meus hábitos, no médio prazo, sem muito entusiasmo mas também sem muita resistência?
Em geral, nas sociedades avançadas, a universidade é um lugar de produção de tendências. Nos Estados Unidos em especial, os jovens vão para a universidade em grande parte para encontrar seus pares e criar novos processos, culturas, hábitos: a universidade é também desenhada para facilitar isso. No Brasil, por exemplo, a primeira onda verdadeiramente moderna, a do pessoal da semana de 22, foi lançada por uns poucos jovens, privilegiados em seu acesso ao panorama intelectual mundial. Mas hoje não dá para contar com uns poucos privilegiados, numa sociedade que pede mudanças constantes, que vive de mudanças. A universidade seria um ótimo lugar para esses encontros geradores de saberes, hábitos, reformas, questionamentos.
Mas no Brasil ela não é um lugar ideal, por razões várias que não cabe aqui discutir. Apenas ressalto alguns fatores: currículos muito rígidos e escolha precoce no vestibular, presença forte de pensamentos políticos dogmáticos e falta de investimento de todos na vivência universitária, que criaria um ótimo caldo de cultura para inovações, na área da cultura, da política e das relações humanas. A universidade, que poderia ser uma incubadora de novas vivências, acaba muitas vezes apenas seguindo bem atrás do que vai sendo desbravado pela sociedade como um todo. Acho isso uma pena, pois seria um lugar ideal para essa busca, com adultos experientes ao lado, ponderando, questionando, dando contextos necessários. Em minha experiência, vejo uma grande quantidade de jovens buscando de modo pragmático e sério realização profissional e contribuição à sociedade, como deve ser, depois um grupo aguerrido mas pouco reflexivo quanto a suas bandeiras e, por fim, os inovadores bastante minoritários, bastante espremidos nesse contexto todo, buscando fora do campus os seus interlocutores mais importantes.
Muitas das suas perguntas têm a ver com o caráter contestador dos jovens hoje. Mas me pergunto se não há aí uma certa idealização da geração de 68, quase que uma mercantilização desta imagem: jovem tem que ser assim, se não contestar não é jovem. Havia razões sociais também para aquele movimento todo, momentos que hoje, como disse acima, os jovens árabes vivem e nós não. O Steve Jobs: ele pode não estar bem, e não ser mais nenhuma criança, mas para todos os efeitos ele é o jovem que largou a faculdade para apostar no que acreditava. Não sei se essa dicotomia entre “jovem” e “sistema” se sustenta mais. A campanha de Obama deslanchou por causa dos jovens; a opção da máquina do partido era outra. Acho que mais do que contestar, os jovens tomam a dianteira e, como disse no começo, esperam que os outros venham atrás. Nesse sentido, o espírito contestador que aparece nas nossas universidades muitas vezes me parece empoeirado. Por que não vão lá e fazem do jeito que querem? Se me convidarem, eu vou.