É fato que à medida que o tempo passa o cemitério, que antes só tinha gente muito antiga e morta, passa a ter personagens que até pouco tempo atrás conviviam com você. Um primo conta que foi a um enterro e viu que no túmulo ao lado estava um amigo que não via há tempo: “Marco, o que você tá fazendo aí?”, ele pensou assustado.
De um lado o tio Jaime empoeirado, lá em baixo ovô Leo com a dona Carlota, meus pais finalmente juntos, lá atrás a Ana, e depois o tio Gilberto, enfim, gente de verdade, com quem convivi. É chato mas é assim.
E assim morreu o tio Isaac, e houve rezas, nas quais se resgatou o que de melhor tinha. A generosidade, o homem de família, a atividade nas associações comunitárias, o senso de justiça. Foi bonito. Pois nesses momentos se registra quem foi a pessoa e o que queremos levar dela. E do tio Isaac queremos levar isso tudo, uma espécie de continuidade do nosso bisavô, um patriarca “que trouxe a família toda da Romênia, imagine só, que homem de visão.”
Acho que a Clarice Lispector está naquele cemitério, mas preservando a tradição não fui vê-la, pois não se fazem visitas aos mortos no dia do enterro de alguém.
No último dia de rezas havia uma outra família enlutada. O pai de um psicanalista carioca havia morrido, e o filho começou um discurso muito bonito falando das histórias do pai, de seus questionamentos de filho, de seu reencontro com essas histórias. O homem, que ganha a vida escutando lamúrias, não aguentou e chorou como uma criança. Pois o discurso foi escrito pelo brilhante intelectual, mas foi lido por um filho confuso que perdia o pai, e o resultado foi apenas a dor doce desse emaranhado, emoções, razões, narrativas.
Naquele dia me dei conta da preciosidade com que nossa tradição vê cada vida humana. Cada pai era um pai. Cada um falava de um jeito, priorizava uma coisa, amava de um modo. Cada um é um. Então naquela semana pensei, claro, no meu pai, nas suas piadas e histórias, mas pensei acima de tudo que cada um tem um pai na cabeça, uma vida espetacular e única que nos inspira e nos alimenta mesmoquando eles se vão.
Então morreu a mãe de um primo e ele disse assim: “Minha mãe não foi nada. Minha mãe era uma pessoa simples.” E aquilo foi tão brutalmente bonito, numa cultura que enaltece as realizações, os prêmios Nobel, minha mãe não foi nada. “Ela veio da Europa depois da guerra, e com meu pai fez uma família. Só isso. Ela era simples.” Então é isso. Cada um com suas vidas, simples, complexas, únicas.