Todo mundo já ouviu isso, que “a mídia manipula”. A idéia aparece de várias formas, mas essa é a que mais aprecio, assim, com um sujeito genérico e o verbo acusador solto na frase, sem objeto. A mídia manipula. Quem exatamente manipula, não sabemos. O Bonner acorda de manhã animado, “oba, hoje vou manipular!”? Ou alguém manipula a ele, obediente? Não se diz. É parte de uma lógica abrangente que prescinde de sujeitos e objetos. Há o discurso das 5 famílias que dominam a mídia nacional, mas esse se sustenta com dificuldade, quando as empresas familiares se profissionalizam e a internet dá espaço às opiniões de todos os que sabem ler e escrever e podem pagar 5 reais numa lanhouse. A melhor versão é a mais compacta e genérica, pois não admite questionamento.
Ouço isso dos alunos, questiono, às vezes funciona, às vezes não. É uma idéia que se naturalizou no meio acadêmico, posso jogar uma dúvida apenas. Digo de modo simples: “Tá, a mídia manipula. Agora, quando você se depara com uma decisão na sua vida, a voz que ouve dizendo faz isso, não faz aquilo, é da Fátima Bernardes ou da sua mãe?” As alunas riem e abaixam os olhos, pois sabem que a voz que ouvem é a da mãe, essa censora e encorajadora onipresente. Além da família, essa terrível forjadora de nossa personalidade, os grupos sociais mais amplos – a vizinhança, o grupo étnico, os parentes – também nos condicionam, é óbvio. E, depois, a instituição que constitucionalmente canaliza um naco dos recursos nacionais, a escola, feita apenas para isso, para nos ensinar, ou seja, dizem o que fazer e como. Mas parece que o que em um é amor, em outro formação, para a mídia toma o nome de manipulação.
Como é que se chegou nessa idéia de que “a mídia manipula”? Os caminhos são muitos. a. Talvez a herança autoritária de nossa educação tenha parte nisso. O educador quer defender o seu monopólio do saber, contrapondo-se no passado ao conhecimento do aluno, às formas de falar populares, prática denunciada por Paulo Freire, por exemplo (que, só a título de curiosidade, é super admirado pelos círculos de esquerda nos EUA). Negar o saber da família e da comunidade e impor o seu, nobre objetivo. E o educador deve defender também o seu saber das ameaças do livro, pai da mídia moderna, pois o livro é múltiplo, é passível de interpretação. O livro desperta a imaginação, abre horizontes, enquanto a palavra do professor deve ser obedecida. Veja o pavor que os professores têm da Wikipedia, por exemplo. É o antigo medo do livro, da leitura própria, da construção coletiva e livre do saber. Aliás, a melhor forma de questionar, em aula, a idéia de que a mídia manipula é deixar o debate correr, pois se vê na prática as mil interpretações da coisa e se imagina (eu espero) que se perceba que com a mídia ocorre a mesma coisa.
(Mas por que essa preocupação toda? Não é só uma questão pedagógica ou intelectual. É simples: tem gente hoje querendo por um fim à liberdade de imprensa no Brasil. Não são esses alunos, nem seus mestres que nunca pararam mesmo para pensar no assunto. Mas eles servirão de apoio aos Dirceus e Franklins que têm objetivos claros, traçam estratégias e vão se aproveitar dessa confusão conceitual para nos fazer engolir seu projeto autoritário que, posto a nu, não tem muitos adeptos no Brasil.)
b. Um outro caminho é intelectual, e não histórico. Há inúmeras teorias da comunicação que de fato sustentam a tese de que a mídia manipula, algumas com brilho. Convenhamos: não dá pra ler Adorno sem se ver em suas marionetes mediáticas, copiando gestos e expressões de artistas medíocres alçados à fama pela indústria cultural. Quem é livre de pecados que atire a primeira pedra: eu, por exemplo, vi com uma amiga o último episódio de Seinfeld, numa despedida coletiva ao sitcom declaradamente sobre nada. Copiamos gestos, roupas, ambições e tudo o mais de personagens rasos e facilmente esquecidos. Daí o medo, justificado intelectualmente, de que a mídia manipula. Podemos até ler outros textos que ressaltem a influência pessoal (Katz) ou o poder do leitor (Certeau), mas sempre fica a suspeita de que Adorno é que está certo…
c. Talvez haja algo específico do Brasil, nossa primeira imprensa veio com a corte, antes não podia. Vou contar um causo: Numa palestra feita na UNESP sobre as conquistas recentes da instituição, o palestrante disse que havíamos subido no ranking da Abril. Um colega ao meu lado riu. Eu perguntei por quê. Ele disse que riu por que era estranho uma revista fazer ranking de universidade. Devia ser algo oficial. Claro, tudo deve ser oficial. Tudo deve vir de cima, com selos oficiais. Como é que se diz algo assim, por dizer, sem um selo, uma aprovação, uma chancela? O que não leva o selo traz perigo, como um frango sem o selo da vigilância sanitária. Esse nosso desejo de aprovação estatal inverte a equação normal da liberdade de imprensa, onde a mídia questiona a ação do Estado. Nessa nossa versão, a mídia contamina e o censor é que legitima.
d. Agora, há um outro caminho ao mídia manipula que não é nosso, e não é propriamente intelectual. Baseia-se numa particular interpretação da história européia do século XX. É uma certa fascinação com o totalitarismo europeu, com aquelas imagens dos comícios nazistas ou com as confissões na Rússia stalinista. Assim como não há como não imitar a Viúva Porcina, também é difícil para um intelectual desconsiderar essas imagens. Elas fascinam. Elas colocam um problema para a mente: como é possível? quem se auto-incrimina? quem se ilude pelos jargões nazistas?
Mas será que esse é um problema mesmo? Será que é tão intrigante assim essa conversão das massas a ideologias esdrúxulas? Ataco essa idéia pois acho que ela de algum modo sustenta o “mídia manipula” mesmo entre os liberais e ilustrados. Será que milhões foram de fato manipulados por filminhos de atletas olímpicos e cartazes em traços toscos e cores fortes? Será que imagens veiculadas em massa tem tanto poder assim? A resposta pura e simples é que não, não tem. São mais que tudo pretextos para uma repressão cruel, essa sim efetiva em silenciar vozes.
Nos países tomados pelo totalitarismo, milhões de opositores dos regimes foram mortos ou encarceirados. Milhões de pessoas. Se a produção cinematográfica alemã fosse tão efetiva no convencimento da baboseira toda da raça superior e do espaço vital, para que os campos de concentração para prisioneiros políticos? A mídia convence aqueles que já estavam convencidos de algo e aqueles que chamamos de maria-vai-com-as-outras: os que saqueiam quando há caos, celebram a festa da democracia quando há eleições e denunciam o vizinho quando há um estado policial.
A construção de uma visão de mundo, de um projeto nacional comum, isso é que coisa que leva gerações, que envolve cidadãos e instituições, inclusive a mídia, que se desenvolve de modo negociado, com conflitos e concessões. Não se impõe, pois as pessoas têm essa incrível capacidade de pensar de modo autônomo, que exercem nas situações mais difíceis. Se o comunismo e o nazismo se impuseram não foi porque de fato romperam os laços familiares ou a ética humana. Foi porque as pessoas que falaram contra os regimes foram eliminadas, simplesmente. Não foi a força da mídia, e sim do revólver apontado na testa no meio da noite.
Em Pittsburgh, conheci alguns russos, um pouco mais velhos que eu. Uma dessas mulheres, como tantas, tinha na família um enorme trauma: o desaparecimento de uma tia durante os anos 40. Sua avó nunca se recuperou da perda, era uma dor permanente. Mas também não correu atrás da filha, não organizou protestos em praças, nada. Não foi por causa do esgarçamento dos laços familiares, não foi porque achasse que a filha de fato merecia essa sorte. Foi simplemente um cálculo: era melhor calar a boca e cuidar da outra filha. Como ela, quantas não fizeram o mesmo cálculo? Quantos não assinaram filiação ao partido pensando na própria segurança ou bem-estar?
Também essa avó, judia, não passou aos filhos as tradições das festas judaicas, aquelas que na mesma época, no Brasil ou nos EUA, eram passadas de forma compacta aos filhos que se secularizavam e se assimilavam. Não foi por estar convencida da superioridade do socialismo ateu. Nem por medo da delação dos filhos. Foi por medo que os vizinhos denunciassem ou que os filhos deixassem escapar na escola alguma coisa. Houve no nazismo ou no comunismo filhos que denunciaram os pais? Provavelmente sim, eram crianças doutrinadas em instituições criadas para isso, juventude nazista e tal. Mas o aparato educacional também teve que sofrer expurgos tremendos para passar a transmitir tolices, pois um adulto não as aceita sem uma ameaça muito concreta, física ou econômica.
Qual o poder da mídia? O poder da mídia é o guardinha que fica na porta da Rede Globo na Zona Sul aqui em São Paulo, o poder da mídia é o segurança na catraca da entrada da Folha na Barão de Limeira. E só. Esse é o poder deles. O resto eles têm que fazer algo que preste e tentar nos convencer disso. Às vezes convencem, às vezes não, pois depende não apenas deles. Do mesmo modo, o poder do nazismo não eram filminhos e desfiles, mas toda uma organização militar voltada sistematicamente contra o próprio povo. Idem para o terror stalinista, sem escrúpulos.
É possível o totalitariasmo sem a força bruta? Talvez na Alemanha Oriental, não sei, eles tenham criado um sistema baseado no medo sem ameaça, num medo que se perpetua, se alimenta de si próprio, que de fato penetra no círculo familiar. Mas eu não poria a mão no fogo por essa idéia. Pois havia o muro, esse monumento à incapacidade estatal de de fato manipular as pessoas, de determinar seus desejos. Um muro duplo, vigiado por homens em duplas.
Às vezes, é verdade, encontramos na sociedade um discurso que não é totalitário, mas é tão homogêneo e opressor que não nos permite encontrar nossa voz nele, nossos interlocutores. Mas nem isso nos faz aderir a esse discurso. Assim é que nos anos 50, nos EUA, surgiu um discurso contrário àquele conformismo consumista, tanto da esquerda quanto de intelectuais marginais. Alguma alternativa a gente encontra, ou constrói. Ou se deprime pelo isolamento, pela nossa incapacidade de encontrar esses interlocutores. Mas não nos convencemos do nosso engano.
Só mesmo a força, a tortura, a ameaça de mais sofrimento nos faz “amar o Grande Irmão”, como no romance de Orwell. No mais, vamos tocando, pragmáticos, essas negociações entre nós e a sociedade, que são mais ou menos difíceis conforme a época e nossa própria condição.