O conto e o blog

Escrita Universal?

Para mim o conto moderno é uma forma universal. O conto captura o humano, no que há de mais íntimo e geral, instantâneo e perene, espetacular e decepcionante. A gente escuta falar de ditadores que gostavam de sinfonias e liam romances, mas que fascínora europeu teve na cabeceira os contos de Tchecov? Que milico latino-americano se deleitou com Laços de Família? O conto é delicado demais, é a experiência humana sem as tramas inteligentes do romance, o contar que captura momentos em que o personagem, que se confunde com o autor, está mais desnudo.

Escrita moderna

Claro que o conto moderno aparece num momento histórico específico. Ele dá conta do indivíduo solto na cidade, que busca uma comunicação com a multidão, comunicação muitas vezes fracassada e sempre incompleta. Assim é que mãe e filha, em Laços de Família, se esbarram num vagão de trem mas não conseguem estabelecer um diálogo. Ou que um menino escreve um apelo ao avô querido para que o tire de sua situação difícil, e endereça a carta com um “Vovô” escrito no envelope, num conto de Tchecov.

O conto, ou sua irmã, a crônica, que para mim não é diferente de um conto cujo material não tivemos paciência de inventar, mas cuja estrutura é muito semelhante – elementos pinçados cautelosamente, imagens tecidas numa trama bastante simples – , a narrativa curta aparece nos jornais modernos. Jornais que buscam, nas notícias, na ficção seriada ou na crônica, o mesmo: captar o geral através do caso particular. Contar o que acontece com o leitor falando do que sucedeu ao seu vizinho. O bilhete de loteria, as mortes e os espancamentos, as vernissagens concorridas.

Eram todas nós. A morte que podia ser nossa mas ufa não foi, a vernissagem que podia ser nossa mas foi daquela desgraçada que subiu na vida você sabe como, o espancamento que espreita as nossas relações familiares, a sorte que generosamente comemoramos com o humilde sitiante que tirou o bilhete premiado. A crônica conta o que mais importa na notícia exatamente por não ter a obrigação de noticiar.

Escrita arcaica

Mas o conto não surge com o jornal; isso não. Ele surge antes. Muito antes. O conto surge antes da escrita, quando o homem chega em casa cabisbaixo e precisa explicar por que não trouxe a caça. Quando chega eufórico e conta a aventura do dia! Dizem que a linguagem, ela mesma, começa com as crianças, dando de brincadeira nomes às coisas, como ainda hoje criam brincadeiras que só entre elas fazem sentido. Mas em algum momento essa brincadeira ficou séria, a de falar, de contar, de relatar. O conto surge quando ao invés da caça chega um corpo inerte, cuja vida será relatada aos filhos e netos. O contar ao invés do viver, no lugar do viver.

Qual o tamanho do conto? O tamanho do conto é o tamanho da nossa memória. É a filha chegando da faculdade e contando a semana antes que toque a campainha, que os irmãos cheguem também e interrompam sua narrativa. O tamanho do conto é, ele mesmo, humano. No conto não há como se perder, não há digressões, personagens secundários. Ele é uma unidade enxuta, redonda. Há muitas teorias sobre o conto, pois ele é um pouco misterioso: por que umas historinhas até meio bobas mexem com a gente? Há uma teoria, de Poe e retomada por Ricardo Piglia, que diz que o conto na verdade narra duas histórias paralelas, que se encontram no final, causando um estranhamento.

Há um conto de que gosto muito, que se chama “A volta do soldado”, de Garland, que conta exatamente isso: a volta de um soldado. Pelo título, já se vê que será algo melancólico, a volta de um soldado. Mesmo um soldado vitorioso, nós já sabemos que a volta é sempre menos heróica do que a ida, nunca a guerra “compensa”. E o conto vai indo, vai indo, ele vai voltando de trem, se despedindo dos companheiros, e a mulher ainda não sabe se ele está vivo ou morto, se chegará inteiro ou aos pedaços, como ela fará com a fazenda? E aí, quando ele desponta no horizonte, seu filho o vê. E aí o leitor se dá conta que o narrador é o filho. Então o conto passa a se chamar, para nós, “A volta do pai”, e é um outro conto que acabamos de ler. Uma outra perspectiva, uma outra história.

Há também um outro conto que gosto muito, que aparece numa coletânea de contos brasileiros organizada por Graciliano Ramos. No conto, um filho quer a benção do pai. Mas esse não quer dá-la, pois julga o filho muito jovem para casar e a moça prendada. demais. Vai acabar como ele, pobre, ignorante. Queria mais para o filho. E há a mãe, eterna mediadora, querendo que o marido dê a benção mesmo sem dizer. O conto é isso, uma fotografia à soleira da porta, o filho prestes a partir, o pai inconformado, a mãe impotente. O tema parece um pouco tradicional demais, mas a forma é moderna, é uma fotografia tirada de uma família. Quase vemos os três congelados naquele momento…

Há quem diga e eu concordo que o Brasil escreve bem as narrativas curtas! Pelo que elas se agarram à tradição oral, talvez. Pelo que elas se agarram a tradições ancestrais trazidas pelos portugueses, mediadores de dois mundos. Ou pelo que elas se adaptam ao Brasil que lê, ou lia, pouco, que quer efeitos imediatos, que não encomenda livros mas devora o que lhe chega às mãos. Não sei exatamente. Mas o conto e a crônica brasileira são especiais. Repare como estamos sempre contando histórias, como fugimos das análises para cairmos nos causos e nas fofocas na primeira oportunidade.

Nada contra o romance, mas eu pessoalmente gosto dos romances que são contos tecidos juntos. Grande Sertão, por exemplo, há episódios que se sustentam por si só, como o julgamento de Zé Bebelo, por exemplo. É um conto maravilhoso. Riobaldo suspende o tiroteio com uma ordem falsa, o chefe quer Zé Bebelo vivo, e depois arrisca uma defesa onde o medo de falar supera o medo do tiro, da morte, da guerra. Um conto que se encadeia com os outros contares do romance.

Como a Bíblia, aliás, onde cada história se encadeia, artificialmente, através de uma genealogia que se você colocar num romance o editor manda cortar. E cada história é um conto que pode ser contado, que eu posso ler e lembrar inteiro, e passar adiante. Dizem que a Bíblia é uma compilação de textos já escritos e não da tradição oral, ainda assim é uma compilação.

Escrita de hoje

Ah, mas falei do conto oral, do conto escrito numa época em que poucos liam, do conto moderno no jornal, isso tudo já foi. E hoje? E com a internet? Ih, hoje mudou tudo. A crise dos jornais, os livros eletrônicos, a globalização, mudou tudo, esquece o conto, sua poesia tentando capturar o humano dentro da massa, tentando preservar o homem do tempo. Será?

Eu vejo o blog como um descobramento desse contar universal, contar na medida da nossa memória, contar como produto de um desejo expressivo ancestral. Muda, claro, a forma, muda o contexto onde aquele contar se dá. Muda a linguagem e mudam as línguas, ou seja, muda muita coisa. Então vamos pensar o que é uma postagem no blog.

A primeira pessoa está lá, como na tradição oral. Eu vivi, eu pensei, eu vi, eu fiz. Seja relato, testemunho, impressão, análise, é o eu que posta no blog. Às vezes, é a crônica mesmo, transportada das páginas de jornal para a internet. Mas é na internet, então a primeira questão é: em que língua eu escrevo? Pois na Folha eu perguntava: quantos toques? Uma retranca e duas entrevistas? Etc. Mas nunca perguntei, escuta, Sérgio, vamos escrever em inglês essa matéria? Acho que vai ficar mais legal. Pois o jornal é nacional. A internet não.

Então o público é muito mais vasto, potencialmente. Claro que para a maioria de nós o blog alcança meia dúzia por dia, quando bate 50 eu me assusto. Mas quem é essa meia-dúzia? Não sabemos, como não sabiam quem seriam os leitores da Bíblia quando um grupo de cananeus resolveu escrevê-la. Pois, como analiza Derrida, a escrita é sempre um tiro no escuro, um falar para o nada.

O blog pode ser um diário também, mas diário feito para o mundo. Habermas também já trata disso quando analiza a intimidade do século XVIII, já voltada para o público, um viver privado já de olho em sua platéia. E há os bons blogs, os blogs de análise, os ensaios na internet, mas repare que quando aparece uma postagem mais acabada, com citações, aí os comentários são: “puxa, nem parece blog, você escreveu um artigo.” Então o blog é mais jogado mesmo, mais improvisado, menos ponderado.

Há quem vá dizer que o blog é intertextual por natureza. Em outras palavras: é cheio de links. Ele se espalha para citações, referências, nisso sendo distinto do conto moderno que se sustenta por si, mas não tão distinto assim, pois o conto sugere, começa um pouco como o romance da Clarice, com reticências, e termina com dois pontos. Ou seja, o conto é parte de um emaranhado narrativo. É um elo. Mas o blog é dentro dele mesmo todo cravejado de links. Enfim, não precisamos forçar semelhanças, mas notemos que o blog tem pontos em comum com as outras formas narrativas.

Agora, tem algo no blog que o conto não tem mesmo, nem o ensaio nem ninguém. Isso é da internet, é próprio desse meio que é global, que é simultâneo, e que portante difere do telefone, da televisão, dos jornais, de tudo. Ele é simultâneo, como a TV. Mas ele é quase privado, como um diário. Um diário que se espalha num tempo específico, quando outros diários se espalham também na rede. Ou seja, diários que conversam. Num evento global isso se revela; os jornais até conclamam os leitores a trazerem fotos e experiências relativas ao evento – catástrofe ou cerimônia de posse, final esportiva ou golpe de Estado – e botam links no jornal na internet dirigindo aos blogs.

Mas no dia comum, sem evento global, os blogs também se referem uns aos outros, se citam, emergem juntos da mesma experiência, local ou global. Ou seja, o cronista do jornal tem a obrigação de captar a experiência do leitor através da sua. O blogueiro, não. Pois seu leitor não é um despossuído mediático: ele tem a sua coluna também, reverberando as dos outros, trazendo coisas novas. Então para o blogueiro não há a responsabilidade do contista ou cronista, pois ele conversa, não interpreta.

E mais: ele não interpreta, ele constrói. Pois a minha experiência está já perspassada pelos blogs que leio, pelas histórias que leio, pelas perspectivas a quem tenho acesso no calor dos acontecimentos. Quem, entre os filhos que esperavam os pais voltarem da guerra, pode ler o “blog” de Garland? Seu conto é uma foto daquele momento, foto passada de mão em mão, amarelada, preciosa, velha.

Hoje, com os blogs, e ainda mais com os computadores portáteis e telefones inteligentes, que vão com a gente onde a gente vai, hoje a gente escreve quase que conjuntamente. Eu acompanho no twitter a minha colunista ponderando sobre a manchete de amanhã e conto quando acabei esse meu texto. Ainda há nomes, reconhecimento, veículos de peso. Mas na substância estamos todos no mesmo meio, com as mesmas ferramentas. Trata-se mais de diálogo que de interpretação, como se compartilhássemos o nosso caderno de notas.

Agora, o contar é o mesmo de antes. Fiz um bolo que deu certo. As calçadas paulistanas são uma vergonha. Os americanos engordam. A novela está chata. Meu candidato é bom. Hoje o dia estava tão bonito. Minha cachorra morreu. Sofri com os demoronamentos em Angra. Nasceu meu neto. Descobri a pólvora. Enfim, as coisas humanas, que vivemos e sobre as quais temos opinião.

E o que muda afinal no contar? Não sei, acho que não muda nada. O conto moderno, para mim, é a forma universal. Pois ele tem o esmero, a delicadeza que o conto das outras épocas só sugere. Banal como um blog ou uma história de caça, mas profundo como um tratado de filosofia. O blog é o conto depois da revolução sexual, algo se perde, algo se ganha. Quando uma postagem de blog é boa, eu vou pensar: isso aqui é bom como um conto! Porque é da perspectiva do conto que eu penso, leio, escrevo e conto. Quando não for tão boa, vou pensar: está aí uma história que uma pessoa contou.

E, agora, um pequeno comercial: no próximo semestre, vou dar um curso intitulado  “Novos meios, novos desafios?”, onde veremos várias formas comunicativas e investigaremos como e se elas transformam a comunicação entre as pessoas. O curso será sobre os meios de comunicação, os artefatos materiais e as formas digitais que eles comportam. Mas será acima de tudo sobre a experiência humana da comunicação.

Bibliografia

Arrigucci Jr., Davi. (2004). Braga de novo por aqui. In Rubem Braga: melhores contos. São Paulo: Global.

Backer, David. (2010). Long live fiction: a guide to fiction online. http://www.themillions.com.

Bosi, Alfredo. (1994). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Editora Cultrix.

Derrida, Jacques. (1977). Of Grammatology. The Johns Hopkins University Press.

Garland, Hamlin. (2001). A volta do soldado. In América – Clássicos do conto norte-americano. Iluminuras.

Habermas, Jürgen. (1995). The structural transformation of the public sphere. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press.

Kelly, Kevin (2006). Scan this book! New York Times, Magazine.

Landow, George P. (1997). Hypertext 2.0: The Convergence of Contemporary Critical Theory and Technology. The Johns Hopkins University Press.

Levy, Pierre. (1997). Collective Intelligence. Basic Books.

Lispector, Clarice. (1974). Laços de família: contos. Rio de Janeiro: Livraria J. Olympio Editora.

Lima, Melo. (1966). Pai e filho. In Seleção de contos brasileiros: Norte e Nordeste. Edições de Ouro.

Piglia, Ricardo. (2000). Formas breves. Barcelona: Anagrama.

Rosa, João Guimarães. (2005). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Tchekhov, Anton. (1999). A Dama do Cachorrinho e Outros Contos. 34.

Vários. (Antiguidade). A Bíblia.

Vial, Marcelo (2010). Criar narrativa transmídia. IDG Now!

 

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