Simon Dranger

Esse meu bisavô nasceu em Gdow, uma pequena cidade perto de Cracóvia, vi nos registros do Museu da Diáspora. Mas para minha avó ele “era de Cracóvia”, ou seja, já não tinha nada a ver com a vida das pequenas cidades judaicas da Europa Oriental. A verdade? Não sei. O que sei é que das figuras familiares é a mais viva de todas, esse bisavô. Me escreveu outro dia um pesquisador do Rio querendo saber desse nome, Simon Dranger, e para mim não é um nome; é um homem, com cara, jeito, valores, deslizes. De algum modo, está vivo. Fui despejando o que sabia para o pesquisador, mas ele queria só o básico e ficou a vontade de registrar o que sei, antes que algum caminhão de biscoitos Marilan porventura passe em cima de mim e enterre essas histórias.

A vinda ao Brasil: conta a lenda familiar que seu pai se casou pela segunda vez e o jovem Shlomo (é assim que ele aparece nos registros do Beit Hatfutsot, árvore 5208), então com 16 anos, se mandou de casa. Talvez aí tenha ido para Cracóvia? E terminado de crescer lá? Depois não sei mais. Se fosse filme teria mais cenas, se fosse historiadora também, mas a história pula para a chegada dele ao Brasil. Estava na verdade indo para a Argentina, como provavelmente muitos judeus que acabaram ficando aqui. No porto de Santos havia, pelo que entendi, no início do século, uma espécie de comitê de recepção: a comunidade ia lá quando chegava um navio e acolhia quem chegava. Então Simon Dranger, na parada em Santos, escutou uma mulher chamar: “Dranger, Dranger!” Ele perguntou: “Mas como sabe que eu sou Dranger?” A resposta: “Ah, vocês Dranger têm todos a mesma cara.” A mulher o recebeu e o convenceu a ficar. Disse que no Brasil era bom, que ele podia se estabelecer vendendo guarda-chuvas, algo do gênero. E ele ficou.

Essa mulher o apresentou a uma sobrinha, minha bisavó, que tinha vindo com a família ainda de colo, em 1889, provavelmente uma das primeiras famílias judias desta onda migratória, os Pretzel. Assim é que a história me foi passada, mas quem seria essa tia da minha bisavó? Irmã da mãe ou do pai dela? Quando teria vindo? Junto com o casal? Não sei. Enfim, dos Pretzel vi uma foto na casa de minha tia Adélia, mas não sei onde foi parar. Talvez esteja numa caixa de fotos num armário aqui em casa. Foram enterrados no cemitério da Consolação, imagine, numa São Paulo outra, antiga. Mas isso são os sogros de meu bisavô, não tergiversemos.

De fato, os Dranger têm mesmo todos a mesma cara. Meu tio Jaime, filho do Dranger; meu tio Alex, filho da minha avó; o Cao Dranger, filho do Jaime, todos realmente muito parecidos. Então a história procede. Sei da personalidade do Simon Dranger pelos relatos da minha avó, da minha mãe que o conheceu e que também deve ter me passado histórias que ouviu do pai dela ou dos tios… Usava perfume. Isso sei pela minha avó: “Mein Gott, perfume, que Deus me perdoe.” Minha avó detestava. Perfume em geral, homens com perfume e o insuportável narcisismo do pai dela em especial. Simon Dranger gostava de andar alinhado, das coisas boas. Isso a minha família tem como padrão: os homens são vaidosos e ousados; as mulheres inteligentes e sensatas.

As filhas estudaram em bons colégios e ele tinha lugares reservados para a família no Teatro Municipal. Seu sonho era ser um Klabin! E aí se metia em negócios que nem sempre eram tão lucrativos como os dos Klabin. Mas os homens da minha família não se abalam muito com os infurtúnios da vida, pois têm sempre a cabeça em um novo projeto, uma nova idéia. Simon Dranger vivia viajando, fazendo negócios. Nas palavras da minha mãe, “a cada volta fazia mais um filho.” No total, era 5. Nas palavras da minha avó, filha mais velha que ajudava a mãe nas pesadas tarefas domésticas daquela época, “cinco filhos, que Deus me perdôe!” Ela mesma teve apenas 2, apavorada com a labuta diária da mãe.

Foi bom ter dado essa educação toda às filhas? Teve suas desvantagens. Na época, a colônia judaica era realmente limitada. Os judeus estavam chegando, e chegavam sem falar a língua, vindos de aldeias pobres ainda imersas na cultura ídish tradicional. De tal modo que não havia pretendentes à altura de minha avó e minhas tias entre “os nossos”. Minha tia Adélia se casou com “um brasileiro”, eufemismo usado para se referir a um homem local “pardo”, na definição do IBGE. Mas cursava com ela a primeira turma da faculdade de Filosofia da USP, foi diretor do Museu do Ipiranga se não me engano, enfim, era alguém de cultura. Nas palavras do meu bisavô, pragmáticas mas ainda envoltas nos preconceitos de ontem, “se é para cair, que se caia de um bom cavalo”. A resistência da família magoou minha tia Adélia, que obviamente se afastou de tudo o que era judaico. Mas o passado a gente não apaga fácil. Minha mãe, visitando a tia Adélia no seu novo apartamento na Avenida Angélica, me disse realmente espantada: “Mas é uma cópia da casa do meu avô. Os móveis, o ambiente, foi como se eu tivesse voltado à casa do meu avô.”

Minha tia avó mais nova, Leonor, conheceu um judeu polonês de passagem pelo Brasil, se não me engano refugiado da guerra. Ele e sua inseparável mãe estiveram na Itália durante a guerra, depois por alguma razão vieram para cá. Ela se apaixonou e foi morar na Itália; ele faleceu ainda jovem mas minha avó dizia que ela o amava tanto que quando via televisão à noite colocava uma cadeira ao lado dela e repousava a mão nessa cadeira, como se o marido ainda estivesse presente. Minha tia Leonor mesma me disse: “Não busquei um judeu, isso não; eu simplesmente me apaixonei e ele era um judeu.” O filho deles, o mais novo dos primos, herdou o nome do avô e, segundo diziam, a vaidade.

Minha avó também não poderia ter se casado “entre os nossos” locais, por causa dessas diferenças culturais. Ia ao Municipal para os concertos, espetáculos de balé. Um dia foram ao teatro ídish e um personagem tinha dor de dente. Uma senhora do lado suspirava: “Ai coitado, está com dor de dentes!” Não aguentavam. Não estudou filosofia mas estudou na Escola de Comércio, que era mesmo muito mais a sua cara: prática, pé no chão. Lia, falava um português perfeito; lembre que essa geração ainda não tinha o sotaque italiano da seguinte. Veja a Cleyde Yáconis falando na novela das 8 e é assim que falava a minha avó. Então minha avó esperou um pouco mais, ela não era nem de paixão nem de brasileiros, e chegou meu avô ao Brasil e aí sim ela casou. Meu avô, aliás, é um pouco parte da história, mas vamos deixar o fim para o fim.

Simon Dranger vivia viajando, como vimos. A cada volta um filho. E às vezes levava a família toda também. Minha avó nasceu no Rio de Janeiro, e o pesquisador me relatou que em 1910, no ano seguinte a seu nascimento, Simon Dranger aparece como fundador da sociedade israelita do Rio. Moraram em Porto Alegre. Meu irmão conta que minha avó dizia que Porto Alegre era muito provinciana na época. Que época? Não haveria de ser quando ela era ainda muito pequena. Já deveria ser uma moça, isso já deveria ser nos anos 20. Em 1924, a família já está em São Paulo, se não me engano na Vila Mariana, onde se esconderam no porão da casa, vedando as janelas com colchões, para se proteger da infâmia daquela guerra, quando as tropas rebeldes abandonaram a cidade e as leais ao governo trataram a população como inimigas.

Um dia meu bisavô chega em casa e conta à minha bisavó Rosa que havia comprado uma máquina tipográfica! Deve ter contado animado, esperançoso, aguardando um aplauso. Ao menos é assim que o vejo, é assim que projeto talvez a imagem de meu pai nele. E a mulher desmaiou. Caiu. O que há de mais eloquente que essa queda feminina? E garanto que não era o espartilho, eram as responsabilidades da casa, a sensatez, a nítida impressão que aquilo não ir dar em nada. “Você é mesmo uma Pretzel!”, Simon Dranger dizia à mulher, de acordo com minha mãe que deve ter ouvido de outra pessoa, pois sua avó ela não conheceu e por isso ganhou-lhe o nome, conforme a tradição judaica.

“Você é mesmo uma Pretzel!” O que isso quereria dizer? Eu leio assim, você é mesmo uma chata, sempre me lembrando dessa coisa inconveniente rotulada de realidade. Eu vou ser um Klabin, era só você deixar de agourar e aplaudir um pouco que eu chegava lá. Ou novamente projeto meu pai dizendo para minha mãe: “Você está ficando igual à Guita!”, que ouvi tantas vezes. Você está ficando chata, neurótica, autoritária, cinzenta. Entre na minha fantasia que ela vira realidade. O pesquisador me mandou os links, em 1920 a gráfica e papelaria em nome de Rosa Dranger entra em concordata e logo depois vai à falência, em São Paulo. Links maravilhosos, que atam a história dessas cidades com as histórias ouvidas em casa.

Ainda nos anúncios do diário oficial: consta que um Simon Dranger teria dividido o mesmo endereço comercial com um Jacó Schnaider, no Rio de Janeiro dos anos 30. Meus dois bisavós, sócios? Dois homônimos? Esse Jacob Schnaider era um vizinho de meus tios cariocas, homônimo do avô deles. Escrito igualzinho, um outro Jacob. Mas também estava no negócio de móveis, estavam todos no negócio de móveis até a história da gráfica. E minha tia Guita garante que seu avô conhecia o Simon Dranger sim, mas não de se frequentar. Pois a família do meu pai devia ser, para o Simon Dranger e suas filhas cultas, aquela gente das aldeias. E assim que apenas na geração dos pais houve o encontro.

Durante 1a Guerra houve manifestações nacionalistas aqui no Brasil, e empastelaram sua gráfica, se não me falha a memória. Será que a os problemas da gráfica vieram daí? Dranger, um nome meio alemãozado, essa a razão. E parece, pelos links, que no início dos anos 30 ele teve seu pedido de naturalização negado, à vista das declarações da polícia. Declarações da polícia? Quais? As falências, espero. Ou que era judeu. Ou, sei lá, algo picante.

E a família que aparece no Beit Hatfutsot? Sua mãe, assim como uma sobrinha que deixou descendentes, se chamava Tcharna como minha avó. Haifa e Pretória são as cidades associadas à geração de minha mãe, mais não sei. E o sobrinho com quem meu irmão diz que meu bisavô trocou cartas, logo depois da guerra, cartas relatando e lamentando a morte de toda a família na Polônia, com a exceção dos dois, tio e sobrinho, quem seria?

Santos, Rio, São Paulo, Porto Alegre. Era assim que o bisavô Dranger foi tocando sua vida, seus sonhos, seus filhos. Era uma época pré-Piaget, então se podia dar apelidos derrogatórios aos filhos que iriam assombrá-los até o fim das vidas: cabrita, chorona, bobo, avoada. Só não tinha apelido o caçula, o tio Jaime, eterno Jaiminho, doce, amado, querido por todos. Cabrita a minha avó, pelo andar firme. Chorona a tia Leonor, deslumbrada. Bobo o tio Bernardo, que fez anos de psicanálise e depois queimou todos os livros de Freud. Avoada a tia Adélia, que passou um verão inteiro no quarto lendo Platão e só idosa: “Agora entendo as coisas da casa. Agora entendo as coisas da casa.”

Meu bisavô está enterrado no cemitério da Vila Mariana, mas como é que chegou lá? Morreu, viúvo, dormindo, num bordel. Aproveitando decerto as coisas boas do Brasil. Pois para esses homens, entre uma frustração e um sonho, entre um sonho e uma frustração, há as mulheres, as comidas, as risadas, os perfumes, os sapatos finos e as coisas boas da vida. Não lhe foram buscar os filhos, pelo embaraçoso da coisa, pegar o corpo do pai num bordel. Foi lhe pegar o genro, meu avô, um alemãozão grandão que também gostava da vida e assim contava a história, com gosto.

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