Hoje foi um dia padrão nas minhas viagens. Fui deixando me levar, sem pensar muito. No meio da tarde, eu estava num checkpoint de passagem para para os territórios ocupados, e um soldado me perguntava, depois de eu me identificar como brasileira: “Ah, e você tem alguma explicação para me dar?”
Não tive medo pois com os israelenses não há tempo de ter medo. Você obedece e depois é que vai sentir alguma coisa. Enfim, façamos um flashback para ver como cheguei no soldado, naquele sol acachapante do deserto.
Acordei e fui tomar um suco de laranja num café muito bonito aqui em baixo. Chequei emails e etc. Planejei meu dia: manhã na Universidade de Tel-Aviv para um tour sobre arte e tarde em Yaffo, que ainda não visitei. Peguei instruções com a garçonete, muito atenciosa. É mito que todos falam inglês; às vezes é bem difícil entender o que dizem.
Na estação de trem, vi a passeata para o Guilad. Tinha lido sobre ela ontem, mas não me interessei, muito local, muito não-sei-o-quê. Mas vendo as pessoas não resisti, e segui com eles, conversando com os ativistas. Uma mulher de uns 50 anos disse que estava lá para mostrar ao governo que todos assumiam as consequências, que ele podia negociar. Perguntei a ela por que o protesto agora: “Por que agora os pais dele pediram”, e arrematou com aquela expressão israelense que quer dizer mais ou menos que se você não entendeu, é um imbecil e não há nada a fazer. Bem, eu entendi. Me emocionei. E segui com eles.
Havia muitos escoteiros. Os militares acompanhavam das calçadas, aplaudindo. Os militares israelenses. Alguns com cara de homem, outros com cara de bebê. Mulheres arrumadas, mulheres gorduchinhas. Todo mundo é do exército. Alguns com uniforme, outros com uniforme e arma, um eu vi com a arma e roupas esculachadas, dizendo que saco.
Falei com um escoteiro. Não era pelos pais do Guilad, era pelo Guilad. “O exército diz que ninguém vai ser deixado pra trás. Então não podemos deixar o Guilad para trás. Não sabemos como ele vai voltar. Meu pai ficou alguns meses presos e teve síndrome pós-trauma. Mas temos que tentar tudo.”
Um rapaz que já havia prestado o serviço militar, jovem, muito bonito, cabelos compridos, estilo argentino – sobre a beleza dos israelenses falo outra hora – disse que o governo não apresentava outra alternativa. Que se deixassem o caso ia acabar como o do prisioneiro no Líbano, que ninguém sabe que fim levou. Que libertar os prisioneiros árabes não ia apresentar risco nem aumentar a chance de outros sequestros. “Enquanto essa situação perdurar, sempre vai ter gente fazendo esse tipo de coisa, a negociação não vai afetar nada.”
“Ainda existe a sensação de que você tem que apoiar o governo, que se questiona é traidor. Essas pessoas estão questionando isso.” Fiquei com a impressão de que a passeata era como a roupa esculachada do soldado que vi no domingo. Um saco cheio tremendo. Do governo, do exército, do risco de ser sequestrado por um bando de fanáticos. Um saco cheio da política, dos processos de paz, da porra toda. Back to the basics, libertem esse garoto cuja vida se esvai e não me venham com suas lógicas incompreensíveis.
Continuei até uma praça onde a manifestação ia fazer uma parada para discursos. Um rabino falou, o prefeito, encima do muro, de Tel-Aviv, uma atriz de esquerda, o pai do Guilad dizendo que esperaram 3 anos, que acreditaram que haveria negociações, mas agora queriam resultado. Era isso o que interessava, resultados. Tocaram o hino nacional. Nacional? Pois na manifestação havia apenas judeus seculares. Não vi religiosos, talvez só umas escoteiras religiosas, não vi árabes e muito menos trabalhadores estrangeiros, parece que o Guilad preocupa apenas um certo grupo do país. O grupo que serve o exército. Também não vi a imprensa. Acho que a imprensa era eu.
Encontrei uma americana, radicada em Israel há 50 anos. Mas ainda americana, não sei explicar. O jeito de pensar, de falar, americana. Como é que pode? Ela que me traduziu os discursos, e depois me convidou para ir fazer uma visita aos checkpoints, por uma organização que monitora os abusos. Fiquei feliz com a atenção especial. Estrangeiros sempre se apoiam. Judeus nos EUA, americanos em Israel. Aceitei.
Peguei dinheiro, fomos comer na casa dela, um apartamento desses de predinhos mas muito ajeitado, muito bonito. Mandei um email para meu amigo do avião: posso te ligar à noite, vou estar em Jerusalém? O Guilad eu não sei, mas pelo menos meu israelense eu queria ver.
Então fomos nos encontrar com outra ativista, uma sul-africana também de certa idade, num boteco em Jerusalém oriental, que para mim tinha a mesma cara da ocidental, só os rabiscos eram mais enrolados. Escrevendo agora em português é tudo tão irreal, não sei por onde começar. Aquelas duas senhoras, dirigir até os checkpoints. No posto de gasolina na entrada do checkpoint alguns árabes se ofereceram para lavar o carro. A ativista recusou, pois não nos demoraríamos. O checkpoint estava vazio, apenas alguns trabalhadores árabes voltavam para sua vila. Operários, roupas sujas de tinta, cansaço. O soldado falou em hebraico com as senhoras, que explicou o que fazíamos, e depois chegou minha vez.
Eu, tão eloquente, logo disse: “Não sei bem, estou com elas, elas explicam.” Mas ele insistiu: “Como é que vocês saíram da copa?” Então rimos. Na verdade, ele era, me disseram as senhoras, segurança do check-point, e não soldados. Preciso checar isso, pois não faz sentido. O que queria que eu explicasse o fracasso da copa era legal. O outro fuzilava as mulheres com o olhar. “Seus filhos não estão no exército? E se nós não estivermos aqui, como vai ser?” Elas não escutavam exatamente. Cada um com sua ideologia, um eficiente tampão de ouvidos. Mas falavam. Debatiam. Sem se ouvir, sem se entender. Mas falavam.
Aí veio o soldado propriamente dito, que disse que o sargento não autorizou nossa visita. Útil? Inútil? As senhoras disseram que o soldado era árabe. Eu me confundo toda com essas etnias. Como vou saber? Acho que no Brasil há aquela identidade Balabanian, ou seja, aquele rosto de país mediterrâneo indefinido, ao qual todos nós pertencemos, armênios, árabes, judeus, sicilianos. Podia ser druso, não sabiam.
É bom que senhoras aposentadas vigiem as forças de segurança de um país? É insólito? Não sei. Acho que é bom. Talvez o Sesc devesse organizar também uns acompanhamentos de blitz, sei lá.
Agora o check-point dois, mas complicado. Dá numa cidade perto de Jerusalém, tem um rapaz que vende café que é amigo das senhoras. Eu já tinha me perdido um pouco, não sabia mais o que era Israel proper e o que era território ocupado. Parece que há região 1, região 2 e região 3, dependendo do grau de autonomia da Autoridade Palestina ou do grau de apropriação israelense. Preciso checar como é exatamente. Só sei que não há como governar um país em vários tipos de região. Não há meios.
O check-point em si, tão demonizado, não é nada de especial. Uma rodoviária de Araraquara tem catracas quase tão humilhantes quanto. Um ônibus às 6 da tarde pode oprimir muito também. É uma passagem para gente normal que é tratada como gado, ou seja, nada especial, infelizmente. Os militares estão atrás de um vidro blindado, também coisa normal para paulistano. No mais, aquele tom rotina estilo acampamento romano nas histórias do Asterix. Feio, sujo, humilhante. Mas não justifica a van com ar condicionado e o funcionário da ONU dormindo tranquilamente seu sono canalha.
Entramos em Israel mostrando documentos, depois saímos de novo, batendo papo com uma adolescente muçulmana muito simpática. No saguão para entrar em Israel é que o simpático vendedor de café fica, e também uns meninos curiosos sobre o Brasil, mas que não falavam português. Um menino mais velho perguntou às senhoras por que não eram muçulmanas. Um homem que esteve preso pediu ajuda às senhoras para obter visto para entrar em Israel. Nesse check-point, estudantes com os cabelos cobertos, com jeans apertados, sandálias, saltos altos, todas as roupas. Trabalhadores, professores barrigudos. Fiquei imaginando as aulas dos professores depois de passar pelos check-points e pensei que não gostaria de ser sua aluna. Não gostaria de aprender com eles. Tem gente que mora nos territórios e trabalha em Israel, e outros moram em Jerusalém e trabalham nos territórios, então há fluxo nos dois sentidos ao final do dia.
Voltamos ao estacionamento. A ativista quis me mostrar os graffitis no lado árabe do muro. Eu já sentia que era hora de ir embora. Não gosto dessa coisa de se divertir com a desgraça dos outros, não vi Carandiru, não vi Tropa de Elite e não vi Cidade de Deus. As crianças vieram em peso vender balas, coisinhas, uma pipa imitando uma coisa militar. Do lado árabe o trânsito é caótico, as crianças por entre os carros, os carros subindo as calçadas. “Vamos embora”, eu disse, e fiquei na entrada da cidade. Angústia. Aquele sofrimento eu conheço, falta de chance para subir na vida, carros avançando em pedestre, turistas da miséria.
Violência? Não vi. Desrespeito? Também não. Vi a discrepância entre um país desenvolvido e uma cidade caótica expressa na rotina, como entre nós, do muro, da catraca, do documento, do vidro blindado. O resto é pra sustentar vagabundo da ONU que por mim podia estar estacionado em Belfor Roxo que ia tirar menos pestana à tarde. A senhora da África do Sul me deixou em Jerusalém. Andei, deitei numa praça antes de ligar para o moço do avião. Pensei no dia. Em como era tudo muito familiar, em como era tudo até banal. Em como ia descrever no blog. Aí sem aviso prévio caí no choro. Nem sei por que, choro do nada. Choro talvez de me perder nas entradas e saídas dos territórios, das cidades, das vilas, dos homens, das línguas, das raças. Emaranhado.
Mas em Israel tudo muda de um instante para outro. Um rapaz me viu deitada e chegou junto. Parei de chorar. Conversei. Dispensei. Liguei para o meu israelense. E o dia acabou.