Então Daniel e seus companheiros foram levados por Nabucodonosor e lá ficaram, pelo que dá pra entender, meio presos por um bom tempo. Mas não deram o braço a torcer, pois da comida do rei não comiam, e por mais que os encalcassem os costumes da terra não abriam mão dos seus, que é assim que deve ser. Daniel e seus companheiros, longe de casa mas não de seus valores, que é o que importa. E passaram por todas as atribulações que os desterrados passam, e que outros já contaram melhor que eu então não vou repetir.
Eis que Nabucodonosor ordenou que todos se prostassem diante de uma estátua que havia mandado fazer, inclusive Daniel e seus companheiros, que por óbvias razões não o podiam fazer. É que os judeus não se prostam. Pode ver em volta, não se prostam de jeito nenhum. Sempre aquele olhar fixo, sobrancelha arqueada duvidando de tudo. E um suspiro ostensivo, para os que ainda tenham dúvidas sobre suas dúvidas. Mas se prostar não se prostam.
Só que Nabucodonosor havia dito: “Fogueira para quem não se prostar diante da estátua que mandei fazer.” Dizendo agora parece meio esquisito, jogar alguém na fogueira por que não se prostou diante de uma estátua. Mas naquela época era coisa séria. E nada de Daniel e seus companheiros se prostarem. Tudo em nome de um Deus único, que não admitia prostração.
A fogueira ardendo, e Daniel ouve uma voz. A voz do Deus de Moisés, idêntica, reconhecível, só que com forte sotaque fluminense e uma gramática, digamos eufemisticamente, pagã.
– Ajoelha aí, porra!
– Como?
– Ajoelha, porra!
– Mas você é meu Deus único e…
– Já falei pra ajoelhá… Já falei, bebezão. Já falei… – a voz diz ameaçadora.
– Não posso!
– Maix que merda! Ajoelha, ô otário!
– Não faz sentido, isso.
– Tu vai vê o sentido que vai tê na hora do vamo vê.
– Você é Deus mesmo?
– Agora sim que tu tá brincando com fogo, otário!
– Nosso Deus permite que o questionemos.
– Que porra de questionemos, porra! É pra ajoelhá, entendeu a parada? Ou então tu vai vê o que nóix faix com “ox seux”, né assim que fala aqui na comunidade? “Ox seux” vai tudo se fudê, e fudê mejmo.”
Daniel prostou-se. A ameaça contra os seus, por quem tinha tanto carinho, e além de carinho respeito e lealdade, foi a gota d’água. Era Deus mesmo? Era o diabo? Era um trote de Bangu? Não sabia. Só sabia que seu joelho destravou, e depois foi dobrando aos poucos, sofrido, muito sofrido. Quando chegou ao chão, Daniel estava aos prantos. Os companheiros ficaram atônitos, e depois seguiram seu líder, perdidos, sem entender nada. E não era para nunca vergarem? Por que isso agora de se ajoelhar? E donde as lágrimas do bravo Daniel? Era tudo um mistério.
Daniel continuou chorando diante da estátua, o que agradou a Nabucodonosor. A Daniel, a estátua pouco importava. No fundo não adorava nada. Sentiu como se seu corpo tivesse se quebrado naquela flexão. Destruiu-se por dentro, e a única coisa boa naquele instante é que chorava aos prantos.
O que viria depois disso? Um bandido? Um homem doce? Um trapo humano? Um homem?