Uma homenagem singela

Eu caminhava pelas ruas de S. Paulo escrevendo mentalmente meu email à funcionária cínica da CET que havia me perguntado, fingindo surpresa, onde era exatamente que não tinha faixa de pedestre. Eu dizia que não havia uma só rua de um só bairro dessa cidade onde um pedestre pudesse andar tranqüilo, mas que a CET entuchava a cidade de placas e mais placas com avisos para não parar no cruzamento, pois isso sim era crime na cidade, atrapalhar o trânsito, como na música de Chico, e não passar em cima dos incautos.

Mas o caminhar me trazia à mente pensamentos mais doces. Então pensei que com os comentários que fiz no site sobre os projetos dos alunos, um motim se avizinhava para a semana depois de Tiradentes. Eu iria então propor aos alunos que o motim tivesse a forma do programa Roda Vida da Cultura, pois seria mais divertido do que escutar as críticas da mesa do professor, onde a solidão pode ser brutal. Imaginei a cena com algo que pode ter sido um sorriso, não diria masoquista, pois eu não estava lá no momento, mas, digamos assim, de um sadismo antecipado. Foi então que aconteceu.

A faixa de pedestre imaginária dava num canteiro em forma de lua, sem caminho de pedra. Por isso cruzei o canteiro pela grama fofa mesmo, levantando bem as pernas para não roçar no mato. Algo no meu andar deve ter parecido bucólico aos anônimos motoristas que por ali trafegavam, pois foi isso o que ouvi, em tom admirado:

– Mas que delícia, hein!

Olhei em volta e não havia nenhuma gostosona. Quem era então a delícia? O motorista havia abaixado o vidro, nessa cidade tão cheia de perigos, e repetia a frase com aquele assentir com a cabeça tão próprio dos homens na rua, olhando para mim.

Então era eu a delícia? Eu, que logo antes rosnava para a desconhecida atendente virtual do CET? Que praticamente implorava por um bate-boca na sala de aula? Meu cheque especial invadido na Oscar Freire e Mário Ferraz, então, não haviam sido em vão?

Que delícia, o moço tinha me dito, quase me censurando, como se eu me deleitasse comigo mesmo, à vista da cidade. Vi aquilo como um aviso. Não era possível que fosse mera coincidência eu estar instantes antes armando confusões cretinas e agora ser publicamente desmascarada como uma gostosa. Sorri constrangida e segui meu rumo, mas já era outro rumo. Para onde eu ia? Para a loja Pandora, ver se havia um anel menor? Para a Cordobán, encomendar sandálias que se ajustem ao meu pé fino? Eu estava sem rumo.

Então as ruas de São Paulo eram engarrafadas e intransitáveis, mas um homem ainda podia dar uma cantada barata sem o menor constrangimento, sem medo de parecer politicamente incorreto nem vulgar. Fazia-o com segurança, sem hesitar, constatando um fato: que delícia. E uma mulher podia andar de óculos e celho franzido, ombros encurvados de tanto usar o computador, mais ainda teria sua bunda inconsistente admirada publicamente. E se isso não for um sinal divino eu não sei o que pode ser.

No conto de Clarice que homenageio singelamente com essa paródia, a narradora começa se sentindo a mãe de Deus. E eu termino me sentindo a… bem, num site sobre educação não vou dizer.

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