Palhaços e Macacos

Aceitei o convite de uma amiga para ir ver uma peça com uma atriz de TV, e já estávamos a caminho, no trânsito parado de São Paulo, quando entendi que a peça era sobre Clarice Lispector. Depois de um agradável coquetel sentamos no pequeno e aconchegante teatro paulistano e eu já escrevia mentalmente minhas opiniões sobre a peça: com atriz renomada, financiamento público, tema high brow, e cenário correto, a peça vai ser boa como um jantar da antiga Varig.

As luzes se apagaram e a atriz entrou no palco eriçada. E aí tudo se passou muito diferente do que eu tinha previsto. Minha avó, sentada na minha diagonal, na fileira da frente à esquerda, se vira para mim mal a atriz começa a falar, e me olha com aquele jeito condenatório dela.

– Pois é essa a Clarice que tanto falam. Uma francesa afetada, que sabe-se lá que vida teve.

– Vó, vamos ver a peça. Tanta gente trabalhou nela, dê uma chance!

– Então está bem – ela disse.

Mas se aquietou do modo como vocês sabe que ela se aquieta. E eu mesma achei estranho aquele sotaque francês, confesso. Não conseguia prestar atenção no texto, só na minha avó ali impaciente. A atriz continuava.

– E se veste assim tão bem? Ah, Madame Raymonde com as jóias do Loeb se veste melhor, Lô. Convenhamos.

– Shshsh, vó. É figurino. – A atriz saía do sotaque e se entusiasmava, talvez livre do realismo da TV.

– Mein Gott, que exagero. Que drama! A Adélia talvez goste dessas literatices, mas a mim não me convence. Vamos?

– Não posso ir, vó. Olha as minhas amigas. E vamos parar de falar que vão reclamar.

– Está bem.

O conto “Amor” de Clarice, a parte do Jardim Botânico. A exuberância contida da Clarice, no palco umas plantas projetadas na parede.

– Agora vamos?

– Não posso, vó. – No fundo eu queria ir. Queria sair pelo centro à noite, chuvoso, braços encolhidos, botas firmes. Mas não podia.

– Então era melhor ter ido ver teatro ídish no municipal. Que horror aquilo. Uma atriz gemia de dor de dentes, com um pano amarrado na cabeça, e ao nosso lado diziam: “Coitada, coitada!”

– Vó, estão gostando. Então respeite.

– E não gostavam do teatro ídish? Uma maravilha.

– Concordo, eu preferia também estar vendo a apresentação que a Rosa do Felipe vai fazer na escola, sobre a vida da Clarice.

– Breca, breca, breca! Já não basta a Adélia e você? A Rosa não. Que Deus me perdoe, ouça isso, ouça!

A atriz falava da escrita da autora. Eu era fã, lia tudo. No papel parecia tudo, como disse, contido, pensado, calculado. A emoção parecia apenas escapar pelas entrelinhas. Mas minha avó via o lado grotesco, exagerado, melodrama barato mesmo.

– Que Deus me perdoe, gostar dessa Clarice. Aliás, como vai o de Holanda, o de brinquinhos?

Eram coisas que eu gostava. Os amigos, os livros.

– Rosa, agora vamos! – minha avó às vezes se atrapalhava com os nomes.

Então foi aquela tortura da minha avó, durante uma hora e meia de espetáculo. Sem uma trégua, sabem como ela é. Na hora do humor ela não falava mais nada. Apenas se virava para mim e balançava a cabeça em desaprovação, quase desgosto. “É isso o que você lê? É isso o que você faz, então? E falavam do Moni!”, ela me condenava em silêncio.

Eu ainda me consolava, pois ela comparou o espetáculo com o teatro ídish, e não com os macacos e palhaços que simplesmente lhe tiravam do sério.

– Pior que essa Clarice só os macacos e palhaços de circo, Lô. Que Deus me perdoe!

Eu queria dizer que não era a Clarice, era um espetáculo apenas, a Clarice era ainda a Clarice. Mas eu já estava incerta. E se a Clarice da minha avó é que fosse a verdadeira? E se fosse tudo literatices? E se Fernando Pessoa fosse lido pelo Odorico Paraguaçu, ele não morria um pouco? E se o Cid Moreira gravasse os contos de Checov, a Rússia não poderia exigir reparações?

O espetáculo acabou e a atriz agradeceu a todos, pela energia positiva e, com uma certa ironia, olhando para nós, pelo silêncio respeitoso. Mas quando fui censurar minha avó ela não estava mais lá. Nem o sujeito gordo que a acompanhava, lendo o jornal em seu iPad, meu avô?

Tinham ido embora, os dois, cruzado Higienópolis e subido a Almirante Pereira Guimarães. Minha avó ainda teria tentado continuar falando mal de Clarice, mas meu avô deve ter ponderado que o teatro era muito confortável e que hoje em dia se pode ler o jornal não apenas na sinagoga iluminada para as festas sagradas mas também nos teatros e salas de concerto! Caso não tivesse funcionado, ele teria dado um basta, pois o meu avô ela respeitava. Enfim, estavam lá, na casa da Almirante. Minha avó no fim da noite, inquieta, foi limpar pratas e pregar botões. Fazer coisas. E eu voltei para casa com uma nova Clarice na cabeça.

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