Em entrevista recente ao “Estadão”, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se junta aos críticos da censura imposta ao tradicional jornal paulista. Diz ele: “A democracia aqui tem de ser cuidada permanentemente porque toda hora há forças, no fundo, contrárias a ela.” Que forças?, pergunta a jornalista. “Forças culturais”, responde o ex-presidente.
Mas como é que nossas raízes e heranças se traduzem em forças culturais tão presentes, tão preocupantemente presentes? O que leva um político a crer que a justiça está lá para lhe acobertar crimes? O que leva um juiz a se encobrir no jargão para afrontar a constituição do país? O que leva o cidadão comum, que se indigna com tanta coisa, a tomar a censura como fato da vida?
“Ah”, ouvi de uma moça que servia o café num hotel, “mas essa Geyse aprontou com aquele vestido.” Ela aprontou, o que significa que mesmo não infringindo nenhuma lei ou norma explícita de conduta universitária, alguma coisa merecia. Algum código não escrito talvez tenha sido afrontado e que arcasse então com as conseqüências. A moça do café dizia o mesmo que os juízes do supremo, mas de modo mais expressivo. Não é que um jornal brasileiro não possa publicar fatos de claro interesse público. É que falar mal do filho do Sarney é, para todos os efeitos jurídicos, “aprontar”. E isso o supremo não pode deixar, né?
Mas a pergunta é: como é que esses valores se transmitem, geração após geração, constituição após constituição? Por que é que o direito à liberdade de expressão no Brasil se mantém nesse limbo constitucional e cultural, como disse o ex-presidente? Pois todos sabemos que sem mecanismos efetivos de transmissão que atualizem valores e lhes dêem novos lugares sociais, esses se esvaem, se perdem. E aí, parafraseando o Millôr, correríamos o risco de descambar para uma plena democracia!
Um desses mecanismos de transmissão é a universidade brasileira, com sua insistência no discurso crítico. Mas crítico em relação a quê? Em minhas aulas na Faculdade de Economia da USP, ouvi muito claramente que a corrupção era um fator benéfico ao desenvolvimento, pois azeitava as relações entre o Estado e a iniciativa privada. Discutíamos, claro, desigualdades regionais e sociais, mas nossas fragilidades institucionais eram ignoradas ou até celebradas.
Há na universidade uma crítica geral ao capitalismo, que vai recebendo novos nomes: neoliberalismo, globalização, imperialismo, financeirização, consenso de Washington, FMI ou mesmo simplesmente Estados Unidos. Quando a crítica se torna assim bruta, aos Estados Unidos e seus 300 milhões de cidadãos com suas várias culturas, posições políticas e valores, ela se revela melhor: uma crítica à diversidade, ao outro e em especial à liberdade. Pois os Estados Unidos podem ter, como país, mil problemas, mas eles simbolizam para os americanos e para os estrangeiros que para lá vão a cada ano e para os outros tantos que lá querem chegar, acima de tudo, a liberdade.
(A crítica aos Estados Unidos na universidade é raramente pontual, raramente mira em atos equivocados da política externa, ambiental ou comercial. Ela se dirige orgulhosa ao “American way of life”, ao modo de ser de um povo. Imaginar o contrário seria ridículo: um norueguês escrevendo uma tese de mestrado questionando o “levar a vida brasileiro”, exportado pelo mundo todo com sua caipirinha, música, capoeira, novela, depilação na virilha, cinema e pior de tudo com aquela insuportável alegria de viver.)
Mas há ainda a crítica aos meios de comunicação, e essa é ferina e particularmente importante para responder nossa pergunta. Quando se fala em ditadura, por exemplo, fala-se da Rede Globo, mas não do Estadão. Quando se fala da Rede Globo, fala-se de Cid Moreira, mas não do Jô Soares, que foi para a minha geração o sinal verde para meter o pau no cinismo das autoridades. “A inflação subiu? Muda o gráfico!”, ele dizia, imitando o então todo-poderoso Delfim Neto. Existe uma condenação tácita ao que a mídia diz e ao que deixa de dizer, obviamente com vozes dissonantes tanto entre professores como entre alunos.
A crítica não se restringe, obviamente, aos meios de comunicação tradicionais como o jornal diário ou aos meios eletrônicos de massa, como a TV. Ela acompanha o desenvolvimento dos meios de comunicação, e hoje atinge a internet. Como combater a Wikipédia, por exemplo, é um tema que se escuta nos círculos universitários. Não como financiá-la, enriquecê-la, mas como cerceá-la, isolá-la. E ainda há a crítica ao monopólio das 5 famílias – chutei um número -, um pouco desgastado desde o surgimento da internet, e o pânico diante da expansão do ensino à distância.
A imprensa tem origens liberais, dizem alguns teóricos da comunicação. Esse é o diagnóstico do problema. Por isso tem essa mania quase doentia de descrever o que está acontecendo por aí, às vezes até expressando o que pensa a respeito. Discursos como esse são reproduzidos em larga escala em nossas instituições. A imprensa está a serviço de interesses escusos. Desconfie dos jornais. Da Wikipédia. Busque fontes “confiáveis”. A idéia provavelmente é a de que há uma verdade absoluta, e que a cacofonia democrática a esconde e portanto deve ser suprimida.
Roberto Pompeu de Toledo, em seu livro maravilhoso sobre a história de São Paulo, fala dos esforços inicialmente bem sucedidos dos padres jesuítas em trazer as crianças indígenas para a fé e teologia cristã. Mas quando as crianças voltavam às suas tribos deixavam tudo para trás. Com nossos alunos, acredito, acontece a mesma coisa. Quando saem da faculdade percebem que sem os jornais não tem como saber o que está rolando e pronto. Que no trabalho a internet é uma bênção e não se discute.
Mas há aí dois problemas. Em primeiro lugar, a própria universidade não tem, obviamente, poder de mobilização quando uma afronta à liberdade de expressão acontece, pela simples razão de que enquanto instituição ela não vê essa causa como digna. Afinal, a mídia apronta. Em segundo lugar, quatro ano se passam na vida de nossos jovens, e eles não construíram um discurso articulado de defesa das liberdades de expressão e de informação. Sabem que precisam da mídia, mas cadê os autores e as histórias que os ajudariam a articular sua defesa, diante de um membro da família Sarney, por exemplo?
Deve haver outras formas de reprodução dessas nossas heranças anti-liberais. Mas quis apontar aqui uma delas, a que conheço melhor, a que faz parte de meu cotidiano.
A universidade brasileira faz parte do Brasil oficial, liberticida, com suas raízes na escravidão e na inquisição. O estudante que sai da universidade volta para o Brasil real, que é mais anárquico do que liberal no sentido inglês. Mas a ideia liberal não é “natural” em nenhuma cultura. Como comparação, a física de Newton também não é – já vi professores de física que no fundo do coração acreditam que se as forças que aceleram um corpo param de atuar, o corpo pára de se mexer. Da mesma forma muitas pessoas deixam escapar que gostariam de censura para pontos de vista diferentes do seu. Mesmo entre os liberais. Mesmo nos Estados Unidos.
sei lá, mil coisas. muitas questoes embaralhadas.
tudo o que posso dizer e’ que onde leciono nao vejo nada parecido. vejo outros problemas, mas nao esse. critica ao american way of life? il s’agit de quoi? é alguma coisa que dá dinheiro?
mas talvez a fgv nao faça parte do conjunto “universidade brasileira” a que se refere.
abs
sgold