Os Salles de Santiago

Vi Santiago ontem, no Espaço Unibanco. É um pouco redundante isso, ver um filme de João Moreira Salles no cinema do “banco de papai”. Mas gosto do espaço Unibanco, e se algum dia ganhar na loteria vou botar o dinheiro no Unibanco, acho chique.

Quando vi o diretor numa palestra na Unicamp, uns anos atrás, achei o moço de uma educação, de uma delicadeza impressionante. Fiquei com a impressão de que talvez fosse nobre mesmo. De que nascer em berço de ouro, apesar dos meus marxismos e de minhas histórias de imigrantes, nos fizesse gente melhor.

Então me caiu o queixo escutar sua voz ríspida – e a de uma mulher que ele apresenta como amiga – se dirigindo ao idoso Santiago, antigo mordomo da casa de seus pais. O filme é sobre essa rispidez, que ao final Joãozinho expõe ao nosso riso, e sobre a qual ao longo do filme reflete.

Mas refletir sobre a rispidez não o exime de nada. Ela está lá, o tempo todo, diga isso, encoste a cabeça aqui, agora não, isso não, então diz. Aos meus alunos digo que é preciso escutar. Não dou Derrida nem Peirce, para não ficarem escutando fantasma de filósofo. Digo para abrirem os olhos e manterem as orelhas de pé. Digo para formularem questões só pra conduzir a conversa. Prometo que todos vão querer falar com eles, e que não é preciso interpretar nada pois as pessoas têm compulsão a dizer a verdade.

E eles me vêm com aqueles trabalhos divertidos.

Como é que um documentarista, e ainda por cima nobre, não soube escutar?

Aí talvez valham as histórias de imigrantes. “Shemá Israel”, escuta povo de Israel, é um mandamento ético. Escutar é algo solene. Nessa reza acho que Israel escuta Deus, e às vezes Deus escuta Israel, mas um pouco desse escutar divino está em cada escuta, em cada ato de parar o mundo e tentar adivinhar o que um outro é decifrando os sons que emite.

O filme também é sobre nobreza, e esse é o pulo do gato. Santiago era fissurado pelas nobrezas, todas, antigas, medievais, indígenas, sobretudo européias. Sonhou ser nobre na França, em plena revolução, diz o filme. Ao final do documentário vislumbramos um resto de gente nesse Santiago. O diretor abre uma pequena janela, e o filme fecha.

Mas faltou mesmo o pulo do gato. Faltou não apenas revelar Santiago como olhar o mundo com seus olhos – também procuro ensinar isso aos alunos, não é fácil, ver o mundo com os olhos do outro. E os olhos de Santiago mostrariam uma nobreza capenga, mamãe, papai e seus presidentes depostos, Joãozinho, o calor do Rio de Janeiro. Ou talvez até uma nobreza nobre, como a que vi na palestra da Unicamp, não sei. Mas queria saber quem eram os Salles no olhar de Santiago.

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s